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Quarta-feira, Março 27, 2024

Crença e não crença: Desafios na compreensão do outro

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Não há completude no humano sem uma estrutura de crença. Se o ser não crê comporta-se como um equipamento vazio: tem (pelo menos) uma função que não exerce.           Esta afirmação está longe de querer afirmar que nada somos sem uma crença religiosa. É que de um lado há um espaço organizado em que a crença se estrutura como religiosa, de outro há um imenso campo de espiritualidade e de formação intelectual que pode não ser compatível com a religião e ser estruturalmente crença. A palavra requer contexto e aplicação e tem polissemias, algumas geradoras de polémica mais ou menos branda.

A pergunta mais recorrente é sempre esta: será que um ateu não é um crente? Ou só é crente quem escolhe um deus como seu e a ele consagra parte da sua sensibilidade mais transcendente?

Na linha do cristianismo, encontramos autores que querem defender que “a religião é espiritualidade e humanismo”. Mas, a ser verdade, encontraremos também na vida dos ateus essa estrutura como coluna vertebral: é que a espiritualidade e o humanismo não são propriedade do religioso. E há religiosos que são desprovidos dessas características, eu conheço vários.

O efeito do humanismo – que é um sistema de crenças e de valores assente na razão -, por exemplo, é essencialmente cultural: centrar os valores da vida em torno do ser humano e ter o humano como centro.

As ideias atribuídas a Cristo, quando se baseiam no entendimento de que as pessoas são basicamente boas e que os problemas podem ser resolvidos usando a razão,  consagram um tipo sólido de humanismo.

O Cristianismo, ao centrar os valores da vida no ser humano, é assim um humanismo. Mas também o é o existencialismo como o é o lado mais ideal do marxismo…

Desidério Erasmo, mais conhecido como Erasmo de Roterdão é o exemplo maior de um humanista pelo modo como privilegia os antigos (no melhor da mitologia greco-latina), mas também no seu sentido da livre arbítrio, de valorização da patrística (e dos Padres da Igreja). Erasmo dava particular  atenção à paz, denunciando a guerra, promovia a  concórdia entre as religiões, era a favor da unidade cristã, numa época de clivagem (foi contemporâneo do nascimento do Protestantismo), empenhando-se fortemente, na sua defesa, ainda que no final, não tenha tido êxito, frente à ruptura operada por Lutero e por desentendimentos com o mesmo.

O humanismo está longe portanto de ser exclusivo dos crentes religiosos e em boa medida dispensa mesmo os referenciais religiosos. E a exaltação de uma espiritualidade oferece, por seu turno, diversas interpretações.

Há autores que indicam que a dimensão espiritual é “mais ampla do que a religiosa. É meramente uma dimensão individual, uma procura de bem-estar e da harmonia individual (pessoal e familiar), coletiva (a comunidade, a sociedade, a Terra) e, até certo ponto, a harmonia com o Universo”.

Para entender isto, é útil apreciar as diferentes correntes ateias: o antropoteísmo de Feuerbach; o existencialismo de Sartre; a psicanálise de Freud; o positivismo de Comte; o materialismo de Marx; entre outras.

A história mostra-nos ainda a profunda distância entre os princípios religiosos, espirituais e humanistas e fenómenos como as Cruzadas, a Inquisição, o 11 de Setembro, a matança dos judeus no início do século XVI, a guerra nos Balcãs, a guerra entre a Índia e o Paquistão, os embates entre hindus e budistas, os excessos colonialistas em nome de um Deus inesperado, os atentados do IRA ou do DAESH, e tantos, tantos outros exemplos que nos envergonham e confundem e permitem confundir crenças, religião e projetos de poder mais ou menos evidenciados.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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