Todo o coração é independente
Até se tornar dependente
A partir daí todos os ais são dele
Abraça-me bem
Cobre o meu corpo
Enfim
Nesse agasalho são os teus braços
Sim
Cuida de mim
Basta-me um gesto porém
Abraça-me bem
Como autor sem escrúpulos, com toda a autoridade e toda a inocência, criava países e fronteiras de olhos fechados, e criou também a Cristiana.
E nela, acima e abaixo dos seus corpos nus, marcou com os dedos…«aqui» o Brasil que seduz, «ali» o Paraguai que floresce, «mais ao lado» a Irlanda que incendeia, um pouco «mais acima» a França das noites brilhantes, «logo abaixo» o Iraque dos seus soldadinhos. Depois os montinhos de prazer, depois as estradas, os cantinhos, as ruas, o país dos milagres, e todo um mapa que quase desfalecia por excesso de referências, aos quais se aconchegavam até aquela pausa que apetecia.
Então, nela, estava o único local do mundo que o autor sem escrúpulos entendia.
Eminentemente sós, abraçou-a sem recuos e, na sua catedral, pediu-lhe ajuda.
Bem no teu colo
Chego-me mais a ti
Um pouco mais
Suavemente assim
Tudo, por fim,
São mágoas que eu consolo
Bem no teu colo
Em noites que Lisboa devia ter parado, saboreando-as nos bares, sílaba a sílaba, criou na boca de Cristiana a casa das palavras, para que eles jamais desaparecessem. Palavras fadadas, desmioladas, infinitas, de grito, dor e birra, de partida e de chegada, do Céu e da Terra.
A boca dela sorria de prazer, ela, Cristiana, ficaste o sim, ele a dúvida. Ela possuída de colo e ele a tentar dizer o que tentava não dizer.
E, meu doce amor, sublinhava o autor pouco escrupuloso, no Bar dos Canalhas, numa mesa só nossa, ouvíamos sinos, seguíamos sinas.
E, meu doce amor, sublinhava de novo, nesse abrigo abracei-te sem reflexões.
Todo esse Céu
De pássaros e tons
Muito assombrados
Traz o teu ser
Tão bom
Todo esse tom
Desce a nós como um véu
Todo esse Céu
E descobriu que os olhos dela eram o Universo, a Via-Láctea das artes. Neles havia miminhos a circular e a criar-lhe sonhos de vida impossíveis. Então pedia-lhe, não me acordes, não?
Neste ponto do texto, chovia na Lua e «eles» estavam dentro de uma história que os fazia perder nos olhos um do outro.
Tão bom! – registou – fotografávamos o silêncio.
E nesse manto o escritor abraçou-a até se magoarem.
Lançado à Terra
Sobre restingas e Ilhéus
Mil sombras de asas
Lembram-me a ausência de um deus
Pois só o teu afago
Me espera
Lançado à Terra
Na cadeia dos braços dela ele flutuava até perfurar as nuvens, até, (voltava a ela) Cristiana, «nos consumirmos nas palpitações das madrugadas a ouvirmos músicas calados para escaparmos do que nos sufocava».
Nos braços, nos braços, nos braços, «querida Cristiana» o escritor, já com os escrúpulos fragilizados, afirmava que «trocavam a vida» mas mesmo assim «todos foram de menos.
E qualquer coisa acontece
No mais alto dos Céus
Qualquer coisa no fundo do meu coração…
Mas não sei das trevas
Nem da luz, pois sem ti
Não há nem Céu
Nem chão.
E se a noite já ronda
A minha cruz
Luz nas trevas
Minha paixão.
Por fim, o escritor que nunca tivera escrúpulos, exausto ia dar por finda a sua narrativa. No canto último do balcão do bar enquanto ouvia esta canção do Fausto que deu título, letra e veia ao texto, concluiu:
– Na nossa cama, Cristiana, só existiam impossíveis e onde só os impossíveis conseguiam conviver uns com os outros…
…cama confortável, cama chão, cama parede, cama tecto. Embarques imediatos para as aventuras, e onde tudo acontecia com uma paixão que punha o mundo em chamas.
• Canção original de FAUSTO. Cantada por ele e também por Né Ladeiras.