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Quarta-feira, Março 27, 2024

Há 230 anos, a Direita e a Esquerda “nasciam” na vida política

Em 11 de setembro de 1789, a Assembleia Constituinte, na França revolucionária, se reuniu para deliberar sobre o poder de veto do rei Luís 16. Cada grupo de deputados escolheu seu lugar conforme as afinidades políticas. Assim, de modo involuntário, mas histórico, a distribuição dos parlamentares franceses, há exatamente 230 anos, marcou a divisão entre a Direita (conservadora ou reacionária) e a Esquerda (revolucionária ou reformista), que ainda hoje pontua a vida política nas democracias.

A Revolução Francesa explodira em julho de 1789. Dois meses depois, os deputados contrários à revolução ou ansiosos por contê-la (alguns nobres e clérigos) sentaram-se no lado direito do salão, em relação ao presidente da Assembleia. Este era, tradicionalmente, o chamado “lado da rainha”. Tais parlamentares – monarquistas fiéis ao rei e dispostos a lhe dar o direito de veto absoluto – foram chamados de “aristocratas”, com um tom de desprezo.

Os demais – burgueses representantes do Terceiro Estado e alguns nobres – queriam limitar o veto do rei e sentaram-se do lado esquerdo do presidente (o “lado do Palais Royal”). Favoráveis à revolução e chamados de “patriotas”, eles se dividiam em três grupos. Os “democratas” eram os mais radicais. Defendiam, entre outras bandeiras, as ideias de Rousseau, como o sufrágio universal.

Havia os “monarquistas”, moderados, como Jean Joseph Mounier, autor dos três primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Era esse grupo que lutava por uma monarquia constitucional parlamentar e bicameral, do tipo inglês. Por fim, os “constitucionalistas” formavam o grupo majoritário, entre os quais estava o abade Sieyès, Talleyrand e Lafayette, fonte da primeira Constituição que estabeleceu uma monarquia constitucional.

Na Assembleia de 1789, a composição social dos deputados de cada Estado estava longe de ser uma representação coesa de cada ordem. Junto aos “aristocratas” – os monarquistas, sentados à direita –, a maioria era de nobres provincianos pobres. Já os representantes do Terceiro Estado, à esquerda, eram homens abastados – advogados, médicos, homens de negócio e até nobres “esclarecidos”, escolhidos pela eloquência e cultura.

Portanto, já na sua origem, Direita e Esquerda não correspondiam a um determinado grupo social, como ainda hoje não necessariamente correspondem. A classificação nos ajuda, porém, a indicar tendências, isto é, serve de critérios para organizar as ideias políticas de uma pessoa ou um partido em um certo período. Mas é preciso, justamente, contextualizar os termos Esquerda e Direita para compreendê-los.

O caso francês

Se a Revolução Francesa foi o berço da Esquerda e da Direita, o século 19 foi o período de maturação e mudanças dessas tendências. Foi também quando surgiu a questão social no contexto da Revolução Industrial. O liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, o anarquismo e o marxismo trouxeram novas ideias e ajudaram a forjar reivindicações que tornaram mais complexa essa polarização.


Assembleia Constituinte da França, em 11 de setembro de 1789: marco inaugural da divisão Esquerda-Direita

A divisão Esquerda-Direita ganhou contornos mais precisos entre a segunda metade do século 19 e o início do século 20. De uma geração a outra e de acordo com as circunstâncias históricas, os termos oscilaram de uma posição a outra, inclusive contrária à anterior. Na França, ao longo do século 19, a principal linha divisória de Esquerda e Direita foi discussão sobre o regime político. Partidários da república e da monarquia mudaram de posição e adquiriam novas nuances conforme a batalha e as demandas da época.

Foi o político direitista François Guizot, ministro da Educação e ardente defensor do rei Luis Filipe, que, em 1833, criou e organizou a educação primária pública da França, lei que marcou a história. A preocupação com a educação só entrou no programa da esquerda na segunda metade do século 19. Jules Ferry, chefe da esquerda republicana, tornou o ensino primário gratuito e obrigatório na França (1881-1882).

A primeira campanha pela abolição da pena de morte foi liderada por François Guizot, ao lado do jovem Victor Hugo, um monarquista convicto na época. Ambos eram de direita. A campanha, contudo, não teve sucesso. Somente em 1981 a pena de morte foi abolida na França – e graças à pressão da esquerda, em especial do socialista Robert Badinter, ministro da Justiça do governo François Mitterand, também socialista.

Uma lei de 1816 havia revogado o divórcio estabelecido pelo Código Napoleônico de 1804. No final daquele século, por pressão da esquerda representada pelos republicanos e socialistas, o divórcio foi legalizado na França (Lei Naquet, 1884). O divórcio era um aspecto importante do programa anticlerical da esquerda que defendia uma sociedade secular igualitária. Com a nova lei, o divórcio passou a ser permitido em caso de crueldade, violência, abuso sério ou adultério.

Ao tornar o adultério motivo para o divórcio e, por conseguinte, criminalizar o adultério, a esquerda rejeitou a reivindicação das feministas – que defendiam o “divórcio revolucionário”, com consentimento mútuo. Em uma sociedade patriarcal e masculina, a lei de 1884 pouco beneficiou a mulher. A esposa infiel continuou sujeita a até dois anos de prisão, o que não ocorria com o homem. Foi somente em 1975 que a França aprovou a descriminalização do adultério, durante o governo de Valéry Giscard d’Estaing, do Partido Republicano, de centro-direita.

O mesmo Jules Ferry, chefe da esquerda republicana que criou o ensino primário gratuito e obrigatório, foi um ardoroso defensor da colonização da África como forma de “civilizar as raças inferiores”. Com a notória exceção de Georges Clemenceau, reconhecido em sua época como um socialista radical, boa parte da esquerda francesa permaneceu fiel à sua política colonial até o final dos anos 1950.

Dimensões mais amplas

A partir do início do século 20, os termos Esquerda e Direita passaram a ser associados a ideologias específicas e foram usados para descrever posições políticas dos cidadãos. Ganharam um espectro mais complexo, que buscava combinar as dimensões política, econômica e social. Visando reconhecer a complexidade e a diversidade que marcam diferentes movimentos e ideologias, Esquerda e Direita foram subdivididas, indo do centro à extrema radical.

Criou-se um certo consenso de que a Esquerda inclui sociais-liberais, sociais-democratas, ambientalistas, socialistas, comunistas e anarquistas. A Direita abarca conservadores, liberais, neoliberais, monarquistas, fascistas e nazistas. Note que o liberalismo, considerado como uma ideia mais à esquerda no século 19, deslocou-se para a direita – um exemplo de como as tendências políticas não são estanques e, portanto, devem ser historicamente contextualizadas.

Isso não significa que o marcador tradicional Esquerda-Direita tenha desaparecido, pelo menos do senso comum. A democracia precisa de argumentos claros e compreensíveis para os eleitores comuns. Isto é o que é torna uma divisão Esquerda-Direita ainda presente e operante.


por Joelza Ester Domingues, Mestre em História Social pela PUC-SP. Lecionou nos colégios Marista Arquidiocesano e Santa Cruz, ambos em São Paulo, capital, e também nos cursinhos pré-vestibulares Objetivo e Intergraus. Autora das coleções didáticas “História em Documento” e “Projeto Athos-História”, ambas pela editora FTD | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV (Ensinar História) / Tornado


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