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Terça-feira, Abril 23, 2024

Lei de Bases da Saúde: uma lei para o séc. XXI

Maria Augusta Sousa
Maria Augusta Sousa
Enfermeira. Ex-bastonária da Ordem dos Enfermeiros e membro do Conselho de Administração da Fundação SNS.

A Lei de Bases da Saúde não resolverá todas as dificuldades do setor da saúde, mas permitirá responder a muitos aspetos estruturais que têm contribuído para a “degenerescência” do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Assim o pretenda a atual maioria parlamentar.

A Lei de Bases de 1990, cuja paternidade pertence exclusivamente ao PSD/CDS, foi a mola impulsionadora do desenvolvimento do setor privado na prestação de cuidados de saúde. Nessa Lei previa-se o “apoio” do Estado ao setor privado e a facilitação da mobilidade dos profissionais entre os setores público e privado. Por consequência, desde então, as políticas de saúde que têm favorecido o engrandecimento dos grupos económicos da saúde, também têm, concomitantemente, promovido o definhamento do SNS. Melhor explicando: através da dificultação da resposta no SNS cultivaram-se as oportunidades de negócio no, alegadamente mirífico, setor privado.

Após 28 anos da aprovação da lei de 1990 parece justo considerar-se que é necessário uma nova Lei de Bases da Saúde porque o papel da Lei vigente se esgotou. O propósito de desenvolvimento do setor privado foi amplamente cumprido e é, hoje, iniludível a necessidade de convenções supletivas para assegurar a universalidade e a generalidade dos cuidados de saúde. Esta indispensabilidade é de tal forma reconhecida que nenhum projeto de nova Lei de Bases da Saúde propõe a extinção das convenções entre público e privado: a proposta do Governo e os projetos do BE (Arnaut-Semedo) e do PCP contemplam-nas.

António Arnaut e João Semedo

Contrariamente ao que a direita pretende fazer crer não existe algum ataque ao setor privado. Tanto o seu papel é reconhecido como as suas atribuições são diferenciadas. É bastante  consensual na sociedade portuguesa que os setores público e privado possam coexistir, cada um com a sua missão, cada um com a sua filosofia. O primeiro para dar cumprimento ao direito constitucional à proteção da saúde e o segundo como meio de gerar lucro através da mercantilização das prestações de saúde. É deveras notável verificar-se que quem pretende iludir as diferenças basilares é o PSD/CDS quando pretende evitar o desenvolvimento do setor público – do SNS.

Para tanto a proposta da direita alicerça-se no projeto de um Estado como mero pagador de um “sistema de saúde” com o consequente ressequir da prestação pública até que este seja apenas um serviço residual. Ou seja, a direita pretende convencer-nos que os nossos impostos devem assegurar os lucros dos grandes interesses económicos da saúde em vez de contribuir para o desenvolvimento do SNS.

De facto, quando cerca de 40% do orçamento de estado para a saúde é canalizado para os privados; quando os cuidados de saúde primários se desenvolveram aquém das espectativas; quando faltam milhares de enfermeiros e médicos nos serviços públicos e quando são necessárias centenas de farmacêuticos, técnicos auxiliares de diagnóstico e assistentes operacionais no setor público, torna-se importante reconhecer que é o SNS que está em risco de perder a identidade e não o setor privado.

A proposta de Lei de Bases da Saúde apresentada pelo Governo sustenta-se no trabalho de consolidação dos princípios constitucionais aplicáveis à saúde realizada pela Comissão Governamental liderada pela Dr.ª Maria de Belém Roseira. A proposta do Governo é mais “enxuta” e clara quanto à natureza da prestação pública do que o documento que o precedeu.

É neste quadro que se nos afigura imprescindível resistir ao jogo dos “interesses mercantilistas” que pretendem desviar o debate para intrigas palacianas, ao invés de abordar o essencial:

1. Agora é tempo de cuidar do SNS

O SNS surgiu com o afirmar da democracia Portuguesa e é um importante instrumento de redução das desigualdades sociais por não permitir que as pessoas fiquem à mercê da “sorte”. O Serviço Nacional de Saúde erigiu-se como determinante estrutural da saúde, dos indivíduos e da população, sendo reconhecido por cerca de 70% dos portugueses como uma das maiores conquistas do 25 de Abril pela sua importância para o progresso nacional, quer económico, quer social.

2. Encontrar as convergências necessárias entre todos os que sempre defenderam o SNS e, por consequência, rejeitaram a Lei de Bases de 1990

A atual maioria parlamentar representa a maioria social que rejeitou a austeridade e a política neoliberal. Esta maioria social defende os serviços públicos como pilar de democraticidade e a continuidade do SNS tal como foi concebido: financiado solidariamente por todos através dos impostos para que todos, aquando da necessidade, possam ter acesso geral e gratuito a cuidados de saúde prestados por profissionais empenhados no serviço público. É este o SNS que afirma a proteção da saúde como um direito e não como um negócio que explora a doença e o medo de a contrair.

3. Assegurar a coesão do SNS

Desde a sua génese que o SNS tem sofrido diversos ataques que o pretendem desestruturar. Uma das primeiras iniciativas destruidoras consistiu na tentativa do seu “apagamento” organizacional em 1982. A Lei vigente prosseguiu pela opção de remeter as questões organizativas e operacionais exclusivamente para o Estatuto do SNS enquanto legislação complementar.

Há que reconhecer que a Proposta de Lei do Governo também peca por ausência de definição sobre a estrutura organizacional pretendida para o SNS. Assim sendo, permite o caminho para a desagregação dos serviços públicos de saúde através da “municipalização” do SNS. Tal “re-centralização” dos serviços de saúde, pulverizando-os pelas Câmara Municipais, seria indesejável porquanto criaria desigualdades ao nível nacional dependendo da riqueza dos municípios; não garantiria maior participação ou “aproximação” aos utentes e dificultaria a adequada e efetiva alocação de profissionais de saúde.

Nesta matéria os projetos do BE (Arnaut-Semedo) e do PCP, que prevêem a definição de uma estrutura operacional para o SNS, poderão constituir-se como contributos importantes para a nova Lei de Bases da Saúde. Uma Lei de Bases da Saúde para o Séc XXI. Uma Lei que impulsione Portugal para um futuro saudável.


Por opção da autora, este artigo respeita o AO90


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