Um perigo radical da liberdade de expressão é quebrar o vínculo que sempre teve com a verdade. Portanto, a liberdade de expressão pode ser preservada ao preço de nunca dizer nada.
por Álvaro Castro Sánchez, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier
É paradoxal que, nestes tempos hiperexpressivos, a questão da liberdade de expressão tenha sido colocada no centro do debate público. A disseminação das TICs na era da infosfera das últimas duas décadas tem levado à necessidade de superexpor a vida privada, emoções ou opiniões em redes sociais que não fazem mais parte de um mundo virtual no qual optam por entrar, porque já necessariamente se vive no mundo real.
Moldando nossas subjetividades e modos de relacionamento, estes nos tornam potenciais cantores, dançarinos, fotógrafos, cozinheiros, escritores e formadores de opinião. Mas a necessidade de comentá-lo, verbalizá-lo, opinar e julgar tudo parece coexistir com o comprometimento da liberdade de expressão no sentido mais clássico e do uso desse direito por duas formas de censura: a vertical, que vem de autoridades políticas ou decisões judiciais, e outra horizontal, de tipo vizinhança, em que razões fundadas e preconceitos racionalizados convivem com um crescente emocionalismo que condena tudo o que ofende os sentimentos pessoais. Ambos provocam outra forma fundamental às vezes esquecida, a autocensura.
Em Espanha, as restrições já foram denunciadas com a implementação da Lei Orgânica de Proteção da Segurança Cidadã de 2015 (conhecida como “Lei da Mordaça ”) e numerosos casos de censura vêm frequentemente à tona em relação a titereiros, atores, ativistas, humoristas, rappers e também historiadores, acusados de ofender a honra nas investigações sobre a repressão de Franco, justamente nos mesmos dias em que um comício em Madrid reivindicou os benefícios do Holocausto.
Na era da pós-verdade
Da mesma forma, ações de associações reacionárias que usam denúncias como meio de propaganda também coexistem com o uso de manipulação e calúnia por parte dos representantes políticos nesta era pós-verdade.
Porque em qualquer um desses sentidos, um perigo radical da liberdade de expressão é quebrar o vínculo que sempre teve com a verdade. Portanto, a liberdade de expressão pode ser preservada ao preço de nunca dizer nada.
Com efeito, a velha instituição democrática da isegoria, que na Atenas clássica conferia aos cidadãos a liberdade de falar na ágora, estava intimamente ligada à necessidade da parrhesia, isto é, a coragem ou valentia de falar a verdade, pois havia a consciência de que a liberdade de falar sem verdade não contribuia para o bem comum, mas antes pelo contrário: deixava a democracia nas mãos de demagogos.
Muito mais tarde, a denúncia pioneira do inglês John Milton recolhida em seu texto “Aeropagitica” (1644) vinculou a crítica à censura à impressão de livros à necessidade de busca da verdade. Assim, as leis inglesas posteriores estabeleceram a exceptio veritatis para os difamações críticas que não insultavam o governo: outros podiam ser criticados e ofendidos, desde que o que foi dito fosse verdade.
Com a consolidação da tradição liberal em que se concebeu nosso conceito de “liberdade de expressão”, o filósofo John Stuart Mill, em seu livro Sobre a liberdade (1859), contribuiu com uma reflexão importante que pode ser operativa quando se analisa do ponto de vista ético da ver a legitimidade da censura. Para Mill, o limite da intervenção nas opiniões estaria localizado no “dano”, entendido como uma importante interferência nos interesses dos indivíduos, como seu bem-estar ou sua autonomia.
Tolerar ofensas
Sua concepção de liberdade de expressão era ampla: as ofensas e as opiniões errôneas devem ser toleradas porque, do contrário, isso implicaria na falta da diversidade necessária para aprimorar os argumentos e para que as pessoas possam desenvolver projetos de vida livres. Tendo em vista o progresso moral da sociedade, poderíamos dizer que o dano limita, mas a ofensa cura.
Historicamente sujeito a debate, o “princípio do dano” transferido para o nosso presente traz alguns problemas: o que fazer com a calúnia e a manipulação da mídia? E aqueles que em nome da liberdade de expressão aspiram aos censores? Como localizar objetivamente a fronteira entre ofensa e dano, levando em conta a variedade de contextos e suscetibilidades em tempos de hegemonia do “eu” emocional?
Da Filosofia do Direito, Joel Feinberg propôs o chamado “princípio da ofensa”, do qual emergem uma série de critérios que podem ajudar a refinar a análise ética do discurso ofensivo.
A restrição de determinadas opiniões ou informações consideradas ofensivas deve ser decidida ponderando, por um lado, a gravidade das mesmas em termos de intensidade, extensão (número de pessoas afetadas) ou duração e, por outro, os interesses da pessoa que ofende, a utilidade da ofensa (por exemplo, do ponto de vista do direito da sociedade ao conhecimento), o contexto (por exemplo, ofender em uma apresentação não seria o mesmo que em uma reunião de bairro) ou a intenção maliciosa ou não do agressor.
Diga a verdade, a cara responsável da liberdade de expressão
Deixando de lado o mundo da arte, que tem como condição a liberdade criativa, dificilmente seria moralmente justificável censurar um historiador que faz bem o seu trabalho ao revelar certos nomes de autores dada a baixa extensão das pessoas que são atingidas pela lei frente ao direito da sociedade para conhecer o seu passado e o dos familiares das vítimas para a verdade.
Pode ser, por exemplo, acusar todo o povo judeu de uma conspiração mundial e reconhecer publicamente os benefícios do Holocausto. Mesmo assim, é possível que para a proteção dos direitos fundamentais seja necessário defender a liberdade de dizer coisas aberrantes ou falsas, o que não implica que não devam ter toda a resposta social e reprovação moral necessárias. Precisamente, porque a ética consiste em fazer melhor do que ditam as leis, a vontade de dizer a verdade deve ser o rosto responsável de quem escolhe livremente se expressar.
por Álvaro Castro Sánchez, Professor de Filosofia Moral, Universidade de Córdoba | Texto original em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier
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