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Quarta-feira, Fevereiro 19, 2025

Não somos grande coisa

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

O que somos não nos torna grande coisa mesmo depois de ensaiarmos as desculpas pelo que fazemos.Ou somos monstros, ou somamos e comparamos arrepios sob o efeito da monstruosidade alheia, o que nos torna pequenos monstros, ou limitamo-nos à paciência de nos constituirmos como sentinelas impotentes à porta do nosso mundo contaminado onde a pandemia alastra e nos engole – o que faz de nós patéticos monstros sempre condenados.

Permitimos esta vergonha de sistema

Quando falo do sistema, falo do capitalista, o único onde 98 por cento do mundo se reconhece e assume como seu braçal e modo de ação.

As alternativas a este sistema, aliás, são envergonhadas ou caóticas. Preferimos um quotidiano com muita falta de cultura, com novas gerações que consideram irreconhecível a estrutura da língua materna e a sua riqueza vocabular ancestral, que não contam pelos dedos por terem os dedos a absorver a radiação do telemóvel, perdão, do smartphone, do tablet, do portátil (na pré-história chamava-se computador) e baixamo-nos em vénias religiosas perante o grande altar dos mercados e do consumo, uns têm o poder, nós o poder de compra que nos mostra de sorriso radiante à saída da loja do chinês, vejam este piaçaba, esta lanterna, esta mesinha, este clister a preços módicos…

Criámos uma confrangedora clausura – até a Madre Paula, freira e amante do rei João V de Portugal, saía mais da casca!

Tornámo-nos todos profissionais da inadequação. Se não fosse assim, continuaríamos saudavelmente amadores – amantes de alguma coisa, da vida por exemplo, essa sedutora matreira, prostituta capaz de dar tanto prazer, traidora tão capaz de sonegá-lo.

Devíamos ter no lugar do céu um lençol estendido que nos protegesse, assim como um abraço de certas mães, e nos levasse a acreditar que a Terra é um bom lugar, sem crispações. Um lençol sempre lavado. Um lençol de sonhos feito das anaguas mais macias e com a maciez das peles que nelas se resguardam.

Deixemos as utopias

O século XX foi o século da morte – nunca houve tantas guerras, catástrofes e massacres na história do mundo e nunca as ideologias sucumbiram de maneira tão intensa, fazendo acreditar que os excessos cometidos eram a sua essência, louca visão.

E se o século que nos antecedeu foi o da morte, o  século XXI é um século de mortos. Não há cidade que se visite que não tenha os seus soldados desconhecidos aprisionados numa homenagem, que da guerra, da derrota e da chacina conserva apenas o ar da matéria em decomposição e a vergonha pública da pedra a consumir-se com a poluição e a indiferença de quem passa: todos nós, com os nossos crepes de luto, com as nossas friezas, com a nossas tatuagens na memória muito turisticamente ativos para não nos lembrarmos de nada.

O que somos não nos torna grande coisa

Devíamos ser preparados para as derrotas e para os fracassos, com uma sólida altivez de humanos aptos. Quando mil correm numa maratona, só um ganha. Quando cem fazem um exame, a melhor nota será do mais lesto, quando dez se reúnem num ministério, milhões cá fora sofrerão as consequências das suas teimosias sem grande solidez mas decisivas, quando dois se amam um é a distopia do outro e nem sempre dão certo. É tão estúpido ver os ministérios da educação a obrigarem os professores a forjar o êxito, passem todos como se eles soubessem, se o que educam é nada e o que ensinam é apenas o que podem, pois quem não está educado não aprende, e a burocracia esmagou a pedagogia, e agora a escola é uma enfadonha folha de excel com professores que passam dez horas lá dentro, num esforço inglório e homicida. Alguns, ao saírem, fazem cem quilómetros para dizer em casa que estão vivos – e voltarem no dia seguinte ao ritmo da montagem, assim se fazem tijolos para a obra. Se quiserem conhecer os vossos filhos, tirem-lhes fotos. Está na moda. Mesmo se só os virem a dormir…f

Quando alguém perde, deve saber perder

É a consequência lógica do confronto, da dialética quotidiana. Quando alguém ganha, deve saber levar os derrotados consigo. Essa é a grande fórmula que opõe o direito do mais forte à saciedade, coisa que não faz sentido algum, à sabedora e ao rincão para cada qual. Em última análise, todos merecemos a terra que pisamos.

Esta prosa agastada insere-se na linha que percorro há muito, essa da filosofia do impuro, que em sentido estrito é um amor à sabedoria do que não é castrado, formatado, despigmentado, uniformizado, homofóbico, xenófobo, umbilical, fascista, em suma.

Somos impuros – é o único rigor. E o que somos não nos torna grande coisa. Leva-nos a correr para trás do ramo grosso, onde nos escondemos – por exemplo quando não votamos -, ou a espreitar com o ar do caçador que, armado, é sempre superior à presa. Podemos fazê-lo como aquele transtornado de Las Vegas, ou como os dois transtornados, o do cabelo ridículo que vive no Palácio do Sol de Kumsusan, ou o outro, o do cabelo ridículo, que vive na Casa Branca. Também podemos acreditar no ser humano e fugir do enquadramento. Por exemplo, como eu, com esta espécie de filosofia barata, a preocupar-me com o estudo das questões gerais e fundamentais relacionadas com a natureza da existência humana; do conhecimento; da verdade, se é que existe em algum local; dos valores morais e estéticos, que alguns ainda devem perdurar; da mente; da linguagem, bem como do universo na sua totalidade.

Porque escrevo isto agora?

É que acaba de saber-se o nome de quem ganhou o Prémio Nobel da Paz – num mundo insano de conflitos e  de guerras, mundo desvalorizado onde o que somos não nos torna grande coisa. O prémio foi para uma Ong., responsável pela Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN). Um punhado de gente que procura enfrentar os monstros. Há quem o faça todos os dias, até a escrever. Há quem seja apenas inútil em todo este processo e esses abundam e multiplicam-se como aquelas células desvairadas que conduzem sempre ao mal.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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