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João de Sousa

Quarta-feira, Maio 1, 2024

Levée en Masse

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

Perante um movimento popular e institucional alargado de recusa e de enfrentamento da ordem legal em vigor (cuja dimensão verdadeiramente ainda não conhecemos), julgo que o conceito que melhor nos ajuda a compreender e a lidar com o fenómeno político catalão é o de desobediência civil. Esta atuação, é verdade, partilha com o ato criminoso o desafio à autoridade e a violação da lei. Mas as duas desobediências – a criminal e a civil – têm também duas diferenças críticas. Na primeira, o criminoso age isoladamente (ou em pequeno grupo) e age sempre em segredo, na clandestinidade. Na segunda, na desobediência civil, a violação da lei é sempre assumida por um largo número de pessoas e é feita às claras, em público e perante todos. Na realidade, ela não existe sem essa exposição pública que a fundamenta e da qual se alimenta.  Além disso, os motivos da desobediência criminal são sempre egoístas, os seus autores agem em busca de um beneficio e de um interesse próprios, ao contrário do desobediente civil que age em nome do grupo, de uma ideia partilhada, de uma dissidência alargada e em beneficio do conjunto que partilha com ele a mesma aspiração.

Esta diferença é decisiva para perceber como a resposta do Estado deve ser diferente perante as duas hipóteses. Ela ajuda-nos a compreender a primeira como caso de polícia e a segunda como caso de política. Só o preconceito e a cegueira política nos pode levar a pensar que, constituindo um caso como o outro violações à lei estabelecida, ambas requerem a mesma resposta do Estado – a invocação da lei, a ação dos tribunais e, em último caso, o recurso à força.

Movimentos de contestação dão origem a mudanças na sociedade

Acresce que a dissensão catalã não diz respeito a uma qualquer lei ou a uma qualquer decisão política. Ela assume uma questão de identidade, desafiando a ordem constitucional, o tratado originário, que alicerça a pertença à mesma comunidade. Na verdade, movimentos semelhantes – semelhantes, não idênticos – estiveram na base das transformações sociais democráticas mais importantes do século passado. O voto das mulheres, o direito à greve ou a legislação dos direitos civis nos Estados Unidos são exemplos de mudanças legais feitas com base em dissidências que triunfaram após vários anos de violência política. No entanto, o que transforma esta questão numa matéria política mais grave e séria é que ela se fundamenta não no rompimento com uma parte da ordem jurídica, mas na rotura com o contrato social que estrutura a vida em comum. Nesse sentido, ela representa um desafio maior ao Estado cuja ordem política é recusada, merecendo igualmente ser encarada com uma especial sensibilidade na forma com que é encarada pelo poder político rejeitado.

Quem sempre viu no projeto europeu o propósito político mais importante e generoso dos nossos dias, não pode deixar de olhar com desalento esta recusa catalã da ordem constitucional de uma Espanha unida. Ela vai, sem dúvida, em sentido contrário ao da integração política desejada, tal como já tinha acontecido com o referendo escocês, cujo resultado, para os europeístas, foi recebido com alívio. Todavia, perante uma tão essencial e íntima recusa de partilhar a mesma comunidade, julgo que devíamos evitar os argumentos paternalistas ancorados no chamado bom senso, como se este faltasse à mente dos provocadores catalães, incapazes de ver o que estão a fazer à história.

A história não ensina tudo, mas se alguma coisa nos diz é que no passado estes assuntos sempre foram resolvidos pelo recurso à força e pela violência. Tais desafios ou dissidências ou foram esmagados ou acabaram vitoriosos após confrontos de especial violência. As imagens dos elementos da Guardia Civil de partida para a Catalunha, aplaudidos pelos seus conterrâneos na sua missão de repor a ordem, não só evocam as expedições de outrora para esmagamento da revoltas nas províncias sublevadas mas também nos fazem lembrar que nunca a coação fez mudar de ideia os recalcitrantes.

Diálogo! Diálogo, diálogo sempre!

O que vimos neste fim de semana na Catalunha foi uma região oscilando entre a desobediência e a insurreição. Infelizmente, a atuação do Estado espanhol parece querer inclinar a balança da primeira para a segunda. O verdadeiro talento político está em saber evitar este caminho. Para tal, não há alternativa senão usar as armas da democracia – a negociação, o diálogo, o compromisso. Esta batalha, se ainda pode ser vencida, só poderá sê-lo pela persuasão. A verdadeira autoridade política reside na legitimidade – o poder que dispensa a força.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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