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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Novos Tempos, Velhos Hábitos

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Se não queremos pessoas informadas devemos inundá-las com informação, para que não haja a possibilidade de ser processada convenientemente.

O que se passou há três dias e foi motivo de abordagem exaustiva em todos os canais de televisão, rádios e jornais, comentado pelos maiores especialistas na matéria, mas também pelos piores, hoje já não é assunto e o mais provável é que o cidadão comum, por si só, não se lembre.

Outros, sempre urgentes e graves episódios, foram eleitos pelos media para ocupar as suas emissões e páginas principais, pelo que o tal assunto, que tão importante era há três dias, hoje está morto. Agora que falamos nisto, quantas vezes se repetem situações idênticas? Muitas!

Por isso não admira que o caríssimo leitor não se recorde sem fazer um certo esforço e apenas porque alguém toca no tema, das inúmeras bombas e bombinhas metafóricas que explodiram nas redacções dos diversos órgãos de comunicação social (OCS) e assim na casa de cada um de nós, salpicando nomes, instituições, honorabilidades, a reputação de muitas figuras da nossa praça, mas também da praça mundial, porque o fenómeno toca, de uma forma geral, as sociedades onde reina a liberdade de expressão, tal como a conhecemos.

Políticos, empresários, banqueiros, outros que acumulam, são os mais visados pelos OCS.

Corrupção, falsificação de documentos, graus académicos forjados, desvio de milhões, fugas ao fisco de dimensões ciclópicas, desvio de fortunas para paraísos fiscais para consumarem a fuga ao fisco, mas também para o branqueamento de capitais provenientes da actividade criminosa ligada aos grandes tráficos mundiais; mas também escândalos ligados ao favorecimento pessoal, ou sejam compadrios para arranjar empregos ou negócios aos amigos ou clientelas políticas ou irmandades, que já pautaram mais pelo secretismo; negócios de Estado altamente suspeitos, porque são ruinosos para este e grandemente lucrativos para os particulares neles envolvidos, abundam igualmente. Muito mais se poderia acrescentar neste campo, mas achamos que basta para enquadrar a problemática.

Não significa que todos os casos denunciados resultem em processos-crime e menos ainda em condenações nos tribunais. Essa é uma outra discussão que ficará para mais tarde. Interessa-nos neste texto dissertar, dentro dos limites que o meio impõe, sobre uma questão muito simples: porque razão há 20 ou 30 anos não se falava em tantos casos?

Pense nisso, caro leitor, porque ao colocar a questão fica implícito que o autor parte do princípio de que nunca faltaram situações como as que hoje facilmente chegam aos cidadãos.

Outros factores contribuem para um actual melhor conhecimento do fenómeno.

Não queremos com isto significar que tudo quanto se passa nos bastidores institucionais, seja nos gabinetes, em restaurantes de luxo, na casa de um dos intervenientes ou de terceiros, seja onde for e que interesse ao cidadão, lhe chegue ao conhecimento. Longe disso. Não temos ilusões. Muito do que não devia acontecer porque lesa os povos, continua e vai continuar a acontecer. O que se passa, na opinião deste pobre escriba, é que a sociedade sofreu uma transformação brutal em poucos anos. Por força das novas tecnologias e da concorrência feroz entre os grupos de comunicação social, ganhou volumetria o combate pela novidade, a ânsia de chegar ao consumidor, a necessidade de provocar o choque social, porque só este desperta o leitor para quem fez a divulgação.

Em Portugal, realidade que temos a obrigação de conhecer melhor, há cerca de vinte anos os canais de televisão privada estavam a dar os primeiros passos. Não podemos ignorar contudo que a sua entrada em cena representou, ao contrário do que alguns pensavam, o corredor, que temos vindo a percorrer, da mediocridade em termos da qualidade da programação. Porém, também não é disso que queremos falar hoje.

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Para o tema que aqui trazemos, interessam-nos as novas tecnologias e a concorrência, bem como o papel destas na caça ao escândalo, criminoso ou não. Nesta perspectiva, representaram o agitar do alguidar das poções mágicas que permitem os compadrios, as negociatas, os enriquecimentos repentinos e, naturalmente, só pode, ilícitos. Passou a haver mais olhos a espreitar, mais ouvidos a ouvir, órgãos que nem sempre se deixam guiar por éticas e deontologias, que nesta «guerra» só estorvam, que pautam a sua existência por uma avidez de serem os primeiros a dar as más notícias. As boas não têm o mesmo valor, são mesmo muito mais baratas. Não chocam, não premeiam.

Há vinte anos, a internet era ainda uma menina caprichosa a quem nem todos tinham acesso. Hoje, encontra-se, podemos dizer, democratizada e ela mexeu com tudo quanto tem a ver com a informação e logo, com a comunicação social. A rapidez e a facilidade de acesso à informação que esta propicia, fizeram aumentar, e de que forma, a concorrência entre os órgãos de comunicação social ditos tradicionais, sendo que os mais tradicionais de todos, os jornais em suporte de papel, estão a viver, quiçá, os últimos anos de uma história de séculos.

Para sobreviver, conquistar audiências e assim publicidade, tudo ou quase tudo vale.

Daí a sociedade aberta em que vivemos estar, a cada dia que passa, mais aberta. Os OCS não conhecem limites na luta pela sobrevivência e espreitam já não pelo buraco da fechadura, mas por qualquer frincha que se lhes ofereça, sem pudor, rodeios, ética. Naturalmente, nesta prática nem tudo é positivo, porque pode ferir, humilhar, descredibilizar, e nem sempre há razão para tal, mas a pressa não permite filtrar, fazer melhor, porque mesmo que os responsáveis pelo alarde venham a reconhecer o erro e façam a ressalva, os danos foram causados.

Por outro lado, este esburacar nas malhas até há pouco impenetráveis, ou quase, dos bastidores do poder político e económico, traz a lume esta catadupa de informação e de escândalos, destapando a careca corrupta e compadria de pessoas até aqui tidas como impolutas, não por elas, porque poucos as conheciam, mas pelos cargos que exerciam, tradicionalmente ocupados por quem entrou, esteve e saiu, sem deixar mácula.

Não que as não tivesse, mas porque os mecanismos à disposição da sociedade não permitiam ir tão longe e perceber o lado bolorento se não podre, de quem saiu da vida pública com aura de impoluto. Muitos até o podiam e podem ser, e aqui também nós podemos estar a ser injustos, mas esta análise parece-nos carregada de legitimidade e assim sendo, muitos outros terão passado pelo intervalo da chuva sem se molharem apenas porque a rede de controlo era então de malha bastante mais larga.

O que se passa com as actuais gerações de governantes, de gestores e banqueiros é que, vivendo num tempo de sociedade escancarada, não ajustaram os procedimentos à nova realidade.

As tecnologias avançam mais depressa do que a capacidade do homem a elas se adaptar. Continuam a sentir a impunidade como a sentiam os seus antecessores e facilitam, certos de que nada de mal lhes pode acontecer.

E a sua crença é tal que continuam, mesmo vendo um ou outro dos seus pares a cair com a maior facilidade por um telefonema menos prudente, por uma gravação de som ou imagem com que não contavam, com a revelação de certos arquivos, intocáveis arquivos, segredos guardados a sete chaves até há bem pouco tempo.

Hoje tudo isso salta mais facilmente para as parangonas dos jornais de papel ou digitais, e para os grandes títulos de abertura dos telejornais, doa a quem doer.

Em nome da sobrevivência tudo vale. E se um qualquer órgão de comunicação social poupa um seu administrador, accionista, político amigo ou amigo destes, um outro órgão de comunicação social já não tem esses pruridos, podendo, contudo, ter com outros.

Mas a diversidade dos grupos económicos e acima de tudo, a luta pela conquista do lugar ao sol no panorama da comunicação social ou, tão só, pelo direito a continuar a respirar, faz com que tudo seja possível e cada vez menos consigam escapar à publicidade os escândalos que vão sendo cometidos – se não for hoje, será amanhã.

É isso que tem estragado as noites de sono a muitos nos últimos anos; é isso que a nós cidadãos, tem dado a conhecer este mundo intrincado que até há pouco estava reservado a uma pequena elite, vista pela sociedade como gente que na sua esmagadora maioria tinha créditos para se poder gabar de deter uma certa superioridade moral.

Que superioridade moral?… Afinal, uma parte significativa dos que nos governam, dos que governam o mundo, são as notícias que o dizem, não têm comportamentos muito diferentes dos que têm qualquer criminoso comum.

Todos, uns e outros, fazem o que for possível para esconder o crime, quando o cometem. Não sendo possível, tudo fazem para tornar difícil descobrir a sua paternidade, e depois escondem os proventos do crime onde lhes for possível para que não se percam e fiquem longe dos olhos do mundo.

Antes de ontem foi o wikileaks, ontem os «Documentos do Panamá», amanhã não se sabe bem, mas algo surgirá a denunciar criminosos, tenham o estatuto que tiverem.

Nos intervalos, outras investigações jornalísticas irão incomodar alguém, cuja consciência o acusa ainda que não o admita – para bem de todos nós.

Talvez as elites não apreciem; por mim, com aquelas excepções que chocam pela falta de pudor dos jornaleiros, que não jornalistas, estou a gostar desta concorrência que comanda o reino dos media, bem como das novas tecnologias, a que esta gente que manda ainda não se adaptou, felizmente, porque continua a fazer como aqueles com quem aprenderam as artes mágicas dos negócios de Estado, daqueles que dão milhões a alguns que os fazem. Acredito que a tendência seja o apertar gradual da malha, fazendo com que o número dos que ficam impunes seja menor. Assim esperamos.

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