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Sexta-feira, Setembro 20, 2024

O pronunciamento em França

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Termo normalmente reservado ao mundo ibérico aquém e além-mar, muito em especial no século XIX, o pronunciamento evoca uma declaração – escrita ou prática – de quem tem ou julga ter o poder das armas, intimando a autoridade a render-se à sua vontade.

E não há expressão mais apropriada para descrever a declaração de vinte generais à frente de um milhar de militares na reserva a apelar ao patriotismo do Presidente da República da França, denunciar o racialismo, o islamismo, as hordas vindas de subúrbios, elogiar os coletes amarelos, escolher como o mais insuportável dos incidentes o decapitar do professor liceal Samuel Paty à porta do colégio onde dava aulas, terminando com uma clara ameaça de golpe militar.

E cito os dois períodos finais que não deixam sobre isso margem para qualquer dúvida:

Por outro lado, se nada for feito, o laxismo continuará a espalhar-se inexoravelmente na sociedade, provocando finalmente uma explosão e a intervenção dos nossos companheiros no activo numa perigosa missão de protecção dos nossos valores civilizacionais e de salvaguarda dos nossos compatriotas no território nacional.

Como se vê, não é possível continuar a contemporizar, sob pena de, amanhã, a guerra civil colocar um fim a este caos crescente, e as mortes, cuja responsabilidade recai sobre si, se contarem por milhares.’

Como seria de esperar, Marine Le Pen viu o pronunciamento como o reflexo do seu discurso político, o Governo denunciou o que qualificou como a sua colagem oportunista ao discurso dos militares, ficando-se por críticas de contexto ao manifesto militar, e a esquerda reclamou sanções, criticou o silêncio governamental e gritou escândalo.

Mélenchon, o dirigente da França Insubmissa, o maior agrupamento político da esquerda parlamentar, um dos incontáveis dissidentes socialistas e o que mais contribuiu para a diluição de tudo o que são as coordenadas da esquerda no oportunismo da submissão ao islamismo, fez questão de entregar a devida queixa contra os golpistas à Procuradoria, que a rejeitou liminarmente.

Mas a esquerda está para todos os efeitos desaparecida, e nenhuma sondagem em qualquer cenário, qualquer que seja o seu candidato, prevê que ela consiga chegar à segunda volta das eleições presidenciais, pelo que tudo se joga no contexto da direita, a mais radical, de Le Pen, a do Governo, e a das incontáveis facções em que se desfazem os herdeiros do gaulismo.

Mas nem o senhor Presidente da República, nem qualquer dos potenciais candidatos da direita à presidência ousou vir a terreiro pronunciar-se sobre o pronunciamento o que, tendo em vista os resultados das sondagens, 58% dos franceses a favor do pronunciamento militar, e a sua dificuldade em se afirmar como estadistas, não é surpreendente.

E a Europa, essa mesma Europa que regularmente dá lições de boas maneiras ao mundo e que reserva as mais duras condenações aos golpes militares, por definição um anacronismo do passado, essa, ficou-se por um sepulcral silêncio.

Entre as disputas de sofás em Ankara, campeonatos de linguagem inclusiva, pânicos covidistas e pegadas ecológicas, a Europa não tem tempo para olhar à sua volta e tentar perceber o que se passa.

É lamentável ver a Europa voltar aos tempos dos pronunciamentos militares, e se há 58% dos franceses que concordam com a iniciativa, isto é assim porque necessariamente algo está a correr extremamente mal na nossa Europa que há décadas fecha os olhos ao que nunca deveria ter deixado de ver.

Estamos a assistir a uma polarização negativa no nosso debate político. Aqueles que deveriam defender a solidariedade internacional com as vítimas do fascismo; que deveriam ter defendido a igualdade de direitos e de valores como base da cidadania; fizeram o inverso, e estão agora a sofrer as consequências dos seus gestos, enquanto os herdeiros do antissemitismo e dos mais variados tipos de suprematismo aparecem branqueados.

Le Pen procura instrumentalizar a situação para dar corpo à sua doutrina de aproximação à Rússia, com um vasto estendal de propaganda que apresenta o regime ditatorial de Putin como o bastião da defesa da cristandade perante o islamismo.

Mas ninguém a confronta com as óbvias fragilidades do seu discurso. Vejamos o assassínio do professor de origem judaica Samuel Paty justamente invocado pelo manifesto militar. Foi perpetrado por um jovem e propiciado pela sua família com origem na Tchetchénia, república russa cujo líder, Ramzan Kadyrov, a transformou num emirato fundamentalista islâmico sob a protecção de Putin.

A Tchetchénia de Kadyrov fornece os seus homens para a expansão de Putin na Síria e tem-se encarregado da eliminação de opositores a Putin, como por exemplo, o assassínio do anterior líder da oposição russa, Boris Nemtsov.

E o que fez a Tchetchénia de Kadyrov perante o assassínio de Samuel Paty? Insultou Macron acusando-o de ser ele o terrorista e homenageou o assassino como se este fosse um herói!

É esta a alternativa a Macron que vai deixar de contemporizar com o islamismo?

A realidade é que todas as ideologias totalitárias e expansionistas são inimigas das democracias. Seja o islamismo da variante ‘Irmandade Muçulmana’ ou da variante teocrática iraniana, seja o imperialismo postcomunista da variante Putin ou da variante Xi.

Claro que são adversárias à Europa de forma diversa. Putin é substancialmente mais perigoso pelo seu arsenal nuclear que pela força desestabilizadora dos seus agentes em França, enquanto o inverso se aplica ao islamismo.

Não convém naturalmente ignorar as divergências entre os adversários das democracias – a realidade é que a eliminação do obstáculo democrático as levaria a uma guerra sem quartel entre si – e menos ainda contribuir a que todos se alinhem simultaneamente contra nós. O ponto essencial, contudo, é o de evitar ser manipulado por esses adversários, o que manifestamente está a acontecer.

O islamismo tem usado e abusado da russofobia para manipular o Ocidente, mas seria igualmente dramático que deixássemos que o mesmo acontecesse no sentido inverso, e é isso o que Marine Le Pen nos propõe.

Aos militares é-lhes pedido acima de tudo que preservem a sua capacidade de inteligência estratégica, certamente na defesa dos seus compatriotas e dos valores da Constituição mas, simultaneamente, assegurando-se de não ser manipulados pelos inimigos da pátria, o que seria o mais catastrófico dos seus erros.

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