É muito mais intensa a vida e a angústia daqueles que pensam e, pensando, se questionam. A esses, as religiões, os dogmas, as ideologias, os caminhos políticos, a mística não servem para nada. Sabem que para que o homem seja digno desse nome, tem de constituir-se natureza e respeitar o mundo não humano, sendo, acima disso, inteligência.
Assim, ao domínio do humano há que subtrair esses que lutam em defesa extrema de ideias de sangue; os que não respeitam o próximo; os que não cultivam os melhores valores que a cultura humana produz(iu); esses que retiraram o Homem como centro do Mundo, por causa de uma ideologia, de um objetivo económico, de uma religião, de um egocentrismo inumano qualquer.
Não é de todo espantoso constatar que na Humanidade a percentagem dos Humanos entre os seres que deviam usar essa designação, é uma parcela baixa. E é fácil perceber que na percentagem menor os problemas filosóficos são intensos e que esses não são para solucionar, mas para superar.
É vergonhoso estar ao lado – no plano do ser universal – de gente como aquele Omar que protagonizou a matança de Pulse, em Orlando. Como pensar que seres vivos como os que militam no Daesh, no Boko Haram ou nos Talibãs, sejam pessoas em sentido estrito.
O mesmo se pode dizer ao olharmos para outros radicais, como os homofóbicos, os racistas, os xenófobos, ou para qualquer um que trace espadas para gritar e atentar contra a vida do seu próximo, em nome de um deus melhor que o deus alheio. Isto é válido para qualquer radicalismo: o clube que provoca o tumulto das claques, os defensores da seleção nacional que gera confrontos de rua, os evolucionistas contra os criacionistas, o desejo de posse sobrevalorizado sobre o desejo de ser – e por aí fora.
Quando René Descartes (filósofo, matemático, cientista francês 1596-1650) sugeriu que o nosso corpo era dualidade – a res cogitans, a coisa pensante distinguível da res extensa, a coisa extensa, a matéria que prolonga e ajuda a passear o pensamento (pensamento e emoções versus carne e ossos), assinava um pensamento perigoso.
Se somos coisas distintas em cada um, o próprio Universo é resultado dessa contradição de opostos, mesmo quando complementares.
Duas substâncias, uma, a mente, a outra a matéria
Já escrevi, revoltado, contra o que se passou em Orlando, nos Estados Unidos, e a instrumentalização feita dos acontecimentos – tentaram colar o assassino homofóbico à política, à religião, ao terrorismo, quando ele agiu em nome de uma cruzada antiga: a cruzada do preconceito.
Tê-lo feito em nome de um movimento (há quem diga que não o fez), de radicais fundamentalistas (da sua terra de origem, o Afeganistão, logo dos Talibã ou de terras que ele desconhecia, como o Iraque e a Síria, sendo portanto mais um imbecil ao serviço dos assassinos do Daesh) não tem a menor importância. Tratou-se de um ato individual, radical, de um assassino manipulado como qualquer outro (e a lista histórica vai, infelizmente crescendo).
Um dia destes, próximo, muito próximo, já ninguém se lembrará do seu nome. Mas o sangue derramado dos inocentes ainda estará na nossa consciência coletiva.
Descartes argumentava que a natureza da mente, o pensamento, era completamente diferente da do corpo, isto é, da matéria, pelo que podiam viver um sem o outro.
Há algo de terrível na aceitação desse pensamento. Mas o mundo impuro em que vivemos mostra-nos que o olhar cartesiano é sagaz: somos corpos; alguns têm como prioridade a beleza, a juventude, o eterno, mas nem todos somos mente (facilmente nos negamos a pensar, somos dos guetos das pequenas ideias, somos do preconceito, do radicalismo, da estupidez suprema, dos nossos deuses inventados, das nossas mitologias, das nossas pequenas revelações).
Infelizmente, aprendemos com a brutalidade
Os radicais apostam no bullying porque é a arma da fraqueza. Mas aqueles sobre quem exercem a pressão estão cada vez mais fracos. E quando assim é, o confronto está iminente (por vir de um estádio civilizacional não eminente).
A pequena percentagem dos (ainda) humanos refugia-se no pensamento. É dele que nascerá o novo mundo, mesmo que seja sobre os escombros daquele que os acéfalos lhe legarem.
Este texto respeita as regras do AO90.