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Sábado, Outubro 12, 2024

Portugal e o Futuro, o 16 de Março e o 25 de Abril

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Carlos AdemarMais na obscuridade que às claras, há 42 anos tudo fervilhava neste jardim à beira-mar plantado. O Estado Novo tinha os dias contados.

Na reunião do MFA de 5 de Março de 1974, em Cascais, fora decidido preparar o programa político e estabelecer a ligação com Costa Gomes e Spínola, os dois generais escolhidos pelo Movimento para encabeçar o processo político após o golpe militar. A 16 desse mês nada disso se concretizara pelo que não estavam reunidas as condições consideradas mínimas para se avançar.

No entanto, as recentes exonerações dos dois generais dos cargos de chefe e de vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, veio precipitar os acontecimentos. Não tanto pelo general Costa Gomes, mas por Spínola. O seu carisma fez com que, particularmente na sua última missão no “Ultramar”, como Governador da Guiné de 1968 a 1973, arregimentasse um grupo de incondicionais apoiantes, entre os oficiais que consigo serviram.

Neste grupo incluíam-se muitos oficiais oriundos de milicianos, cujo processo de entrada no quadro permanente fora favorecido pelo decreto-lei 353/73. Contudo, por se verem ultrapassados nas carreiras, tal norma mereceu a reacção agastada e imediata dos oficiais originários da Academia Militar, levando-os a criar o Movimento dos Capitães, a génese do MFA.

Suspensos os decretos 353/73 e 409/73, Spínola, já vice-chefe do EMGFA, lugar de que tomou posse a 15 de Janeiro de 1974, prometera aos milicianos resolver-lhes o problema. É o núcleo duro deste grupo, agregado a outros spinolistas de patente mais elevada, que se vai pôr em campo e mobilizar esforços para responder ao poder político instituído da forma como era capaz: com armas.

Otelo Saraiva de Carvalho, pertencendo à direcção do MFA, mas não podia dizer-se afastado daquele grupo, já que integrara o Estado-Maior de Spínola em Bissau, onde criara laços com os mais incondicionais spinolistas: Manuel Monge, Casanova Ferreira, Almeida Bruno, António Ramos, entre muitos outros.

22 de Fevereiro

Portugal e o FuturoNão recuando muito, pode dizer-se que a saída em falso das Caldas da Rainha, na madrugada de 16 de Março de 1974, nasceu a 22 de Fevereiro desse ano, dia da publicação de Portugal e o Futuro, da autoria de António de Spínola: o livro gota de água.

Nele, o general ousou pôr em causa a política ultramarina conduzida pelo Governo; defendeu uma solução política para a guerra que desgastava Portugal, apontando para a criação de uma comunidade lusófona multi-continental, em alternativa à situação colonial. Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, seu superior hierárquico, autorizou a publicação depois da carta-branca para o efeito recebida do ministro da Defesa, Silva Cunha, que, manifestamente não se quis comprometer ao delegar a responsabilidade pela publicação de tal escrito e acrescentar que não o lera.

A sua difusão, contudo, provocou ondas de choque inauditas em Portugal desde as eleições presidenciais de 1958. Levou, inclusivamente, o professor Marcelo Caetano a pedir por duas vezes a demissão junto do presidente Américo Tomás. Dizia-se manietado, como confessou no seu Depoimento, escrito nos primeiros tempos do exílio, dada a responsabilidade que teve na nomeação de António de Spínola para o cargo que então este ocupava.

Face à recusa do PR em aceitar a resignação e perante situação de tão elevada fragilidade, já que, perante o país, a cúpula das Forças Armadas estava contra a política oficial, o presidente do Conselho, jogou uma carta arriscada. Convocou todos os oficiais generais em serviço no continente, para que, numa cerimónia difundida pela televisão, não subsistissem dúvidas de que o poder político e as Forças Armadas estavam imbuídos do mesmo espírito, sendo que estas se subordinavam incondicionalmente àquele. O encontro, que ficou conhecido para a história como a «Brigada do Reumático», aconteceu a 14 de Março de 1974, em São Bento.

Um problema dificil, Obra Gráfica de João Abel Manta
Um problema difícil, Obra Gráfica de João Abel Manta

Como Costa Gomes e Spínola optaram por não comparecer, foram demitidos. Coube ao general Paiva Brandão, na qualidade de chefe de Estado-Maior mais antigo, ler um texto que ia ao encontro das pretensões de Marcelo. Este, ao responder, deixou bem claro que nunca tivera quaisquer dúvidas sobre a lealdade dos presentes, mas queria que todo o país também as não tivesse – daí a transmissão em directo pela RTP.

Na longa e interessante entrevista que deu a Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril, Costa Gomes afirmou que nunca lhe passou pela cabeça outra coisa que não fosse pautar pela ausência em São Bento. Estava consciente de que era esse o sentir da generalidade das Forças Armadas, exceptuando, claro, os generais.

Era sua convicção que os militares estavam contra a guerra e a homenagem requerida por Caetano, ia ao arrepio dessa vontade, porque visava fortalecer o bloco que defendia a continuação do conflito.

Spínola apoiou o seu superior na decisão que tomara. Costa Gomes chamou ao seu gabinete outros quatro oficiais generais, um a um, para os auscultar sobre o assunto. Destes, apenas dois cumpriram com o que aí afirmaram: o almirante Tierno Bagulho, que concordou em não comparecer, e o comodoro Peixoto Correia, que desde logo informou que estaria presente em São Bento.

Quanto aos dois restantes, um general da Força Aérea e um brigadeiro de Artilharia, cujos nomes não indicou, foram ao beija-mão, não cumprindo a palavra dada, nem fornecendo qualquer satisfação a quem a tinham dado.

Quanto aos spinolistas, que já nos últimos dias andavam ansiosos e em reuniões conspirativas tentando evitar a muito provável destituição do general, além de a verem confirmada, correu a notícia, talvez mais motivada pelo temor do que pelos factos, de que estaria iminente a sua detenção. Um dos mais animados deste grupo era o capitão Virgílio Varela, que estava colocado nas Caldas da Rainha. Foi ele quem preparou a unidade para sair.

16 de Março

Acresce a presença de dois prestigiados oficiais spinolistas regressados da Guiné nos primeiros dias de Março, os majores Casanova Ferreira e Manuel Monge.

A saída das Caldas da Rainha visava obrigar o regime a demitir-se. Mas o tempo urgia, era preciso agir depressa e nada correu bem.

Apenas saíram as tropas das Caldas, já que as de Lamego e de Viseu, que também se haviam comprometido, por razões diversas acabaram por não o fazer. Quanto às Escolas Práticas de Cavalaria e de Artilharia, nada foi conseguido. Para Vendas Novas ainda Otelo telefonou, falando com o oficial de dia, o capitão Duarte Mendes, que em 1975 venceria o Festival da Canção da RTP, dizendo-lhe: «Não têm aí uma bateria de artilharia?» ao que o outro respondeu: «Mas o meu major disse anteontem que ficava tudo sem efeito!». E tinha razão, era o resultado das muitas hesitações. Nessa mesma noite de 15 de Março, Casanova Ferreira chegou de Santarém de mãos vazias e seguiu com Manuel Monge em direcção às Caldas da Rainha, a fim de se encontrarem com a coluna militar, que já estava em marcha a caminho de Lisboa.

Após a negativa de Vendas Novas, Otelo foi até casa de Vítor Alves, seu camarada na direcção do MFA, contou-lhe o que estava a acontecer e este reagiu azedo: «Como é que te foste meter numa coisa dessas?». «Estou comprometido, agora já não posso sair, pá.» Vítor Alves disse-se preocupado com o general Spínola, temendo a sua prisão quando as autoridades soubessem o que se passava e que eram homens «seus» que estavam por trás de tudo.

Ao contrário do que era a convicção de muitos, segundo a qual, bastaria que uma unidade militar saísse para que muitas outras lhe seguissem o exemplo, nenhuma outra saiu além do regimento das Caldas, e assim, quando as tropas se aproximaram de Lisboa, tinham à sua espera forças fiéis ao Governo com grande aparato. Só nesta altura terão percebido do pouco que podiam fazer e decidiram inverter a marcha e regressar ao quartel. Pouco depois, contudo, as instalações militares foram cercadas por forças afectas ao Governo e os sitiados acabaram por se render sem oferecer resistência.

Quando estava garantido o fracasso, Vítor Alves procurou tranquilizar Otelo: «Aquilo afundou, mas tu voltas ao teu posto». Para de imediato acrescentar: «O Melo Antunes está pelos cabelos, quer saltar do Movimento, tens que lá ir explicar-lhe o que é que houve». Marcaram encontro no café Londres e ao chegarem, depois de Otelo fazer o relato do que se passara, acrescentou: «Aconteceu, mas não vai acontecer outra vez, de certeza absoluta». Sabia pelo menos o que não podia fazer e os cuidados a ter.

25 de Abril

cart25abrilO resultado prático do 16 de Março foi a detenção de várias dezenas de oficiais, entre os cerca 200 militares sujeitos a essa medida. Pode afirmar-se que todo o grupo spinolista foi praticamente neutralizado. Em termos positivos, o MFA acabou por perder apenas as Caldas, face à estimativa de perdas possíveis, muito mais elevada. Por outro lado, uma vez que houve redistribuição de pessoal imposta por castigo, particularmente de Lamego, o Movimento dos Capitães ficou representado em várias unidades por todo o país, onde até então não tinha ninguém.

Numa fase inicial, o Movimento também passou a agir com maior tranquilidade porque, do ponto de vista do regime, todos os militares subversivos haviam sido detidos e a situação estava pacificada. Mas logo a 24 de Março, a última reunião plenária do MFA, onde foi decidido avançar com o programa político e o golpe militar, a cargo de Vítor Alves e de Otelo, respectivamente, os cuidados foram redobrados.

Se um dos grandes méritos do 25 de Abril assentou no planeamento e sua competente execução, o exemplo negativo que chegou do 16 de Março, foi igualmente importante, porque teve um efeito pedagógico assinalável em quem esteve por dentro de uma e de outra acção militar.

Alguns dos envolvidos no 16 de Março sublinharam a importância que esta acção teve no sucesso do 25 de Abril, dizendo mesmo que sem um não teria sido possível o outro.

Não vamos tão longe, teve, isso sim, o efeito de acelerador. Se Portugal e o Futuro gerou uma sequência de acontecimentos que desembocaram no 16 de Março, este precipitou o 25 de Abril, porque a partir daí a urgência da acção instalou-se no MFA.

Era preciso libertar os camaradas presos, além de que, a investigação conduzida pela PIDE/DGS, que se seguiu ao levantamento das Caldas, podia penetrar nos meandros do Movimento e deitar tudo a perder. Havia que agir depressa, mas com planeamento. Faltavam 40 dias.

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