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Quinta-feira, Abril 25, 2024

“É preciso voltar a subir às árvores”

Criança – Religião – Espiritualidade foi o tema da conferência que lançou o debate no dia 8, em Fafe, sobre a formação de crianças e jovens em contexto religioso, formal e não-formal.

A iniciativa do Roteiro para o Diálogo Inter-religioso e Cultural inseriu-se também no Terra Justa – Encontro de Causas e Valores da Humanidade, que se realizou pela terceira vez naquela cidade.

Participaram na conferência representantes de vários contextos religiosos, escolares e formativos.

Rachid Ismael, diretor do Colégio Islâmico de Palmela, disse que “a criança nasce pura”, segundo o Islão, mas os contextos culturais determinam a sua formação e crescimento. O imã citou o ppedagogo muçulmano Haji Imdadulah, para definir quatro fases da vida e da espiritualidade: a imitação, o dever, o hábito e o princípio. Percurso que compara às quatro fases do sistema de ensino – Pré-escolar, 1º ao 3º ciclos, secundário e superior ou “formação para a vida” – que promove no colégio, onde, garante, a “religião complementa a espiritualidade e vice-versa”. Recorde-se que o Colégio Islâmico de Palmela tem também a função de madrassa, ou seja, de formação religiosa.

Noutra experiência educativa, a diretora do colégio católico de Sta Teresa de Jesus, em Santo Tirso, defendeu que a “espiritualidade é inerente à existência humana”. A criança é um “ser espiritual” e mais tarde “pode passar a um ser religioso”, como resultado “de uma adesão consciente ou de tradição, mas de uma adesão”, entende Esmeralda Lima. Numa pedagogia pensada a partir da espiritualidade profunda de Santa Teresa de Jesus, ou Santa Teresa de Ávila, os alunos mais novos deste colégio começam o dia com “¼ de hora de oração”.

A ideia, diz a diretora, “é levar a criança a pensar sobre o sentido do que vai fazer durante o dia”. Para os alunos mais velhos, proporciona-se “uma paragem diária para reflexão sobre o que fizeram”.

Para o historiador e escritor Alexandre Honrado, a “criança precisa de rituais de iniciação para «ser», abrindo o campo de interpretação e de leitura do mundo”, pelo que a missão educativa “é imprescindível” e “começa em casa”. Como escritor dedicado aos públicos infantil e juvenil, também sobre temas religiosos e diversidade, “os livros são etapas de um desafio, de um jogo com os mais novos”.

A aprendizagem no espaço escolar “deve habilitar a criança para a política, ou seja, formar para a cidadania”, propõe Alexandre Honrado.

O pároco local falou da experiência de formação infantil e juvenil em contexto paroquial. “Sem espiritualidade não há religião”, advertiu o padre Pedro Marques, mas “há um eclipse do fenómeno espiritual no espaço público”. A prioridade de uma paróquia deve ser “educar para a espiritualiade e só depois para a religião”, permitir às pessoas uma “descoberta a partir de si”, embora reconhecendo que a catequese é uma “iniciação cristã e visa fazer cristãos, o que não é fácil”. Em jeito de apelo, o pároco de Fafe diz que a Igreja “precisa de formar educadores religiosos”, pois, no terreno da fé, as catequeses “atuam na crise da dúvida, ou até da negação”. Se “a relação com Deus é cada vez mais aberta, Igreja precisa de bons educadores”, conclui. E se cresce o subjectivismo e o individualismo, a crise das identidades religiosas herdadas, há também a “moda de acreditar sem pertencer, desenhando-se um mínimo ético”. Nisto, adverte, “as tecnologias são péssimas instituições educativas” e ocupam “cada vez mais esse espaço”.

A especialista em mindfulness e diretora do Centro Budista do Porto faz a mesma reflexão. No dia-a-dia “não estamos presentes nas nossas próprias experiências, e o mesmo se passa com as crianças” que “têm uma vida agitada, de correria, à semelhança de pais e educadores”. Há que “parar para estar presente”, sugere Margarida Cardoso, dando o mindfulness (método que vai buscar ferramentas ao budismo e promove a atenção plena) como proposta para criar ferramentas que permitam a cada um “estar mais presente” no meio. Já usado na área da saúde, e como “inibidor do stress”, o mindfulness tem entrado na educação como forma de promover a concentração permitindo “mais atenção à experiência do agora, do presente, com gentileza e curiosidade”, explicou Margarida Cardoso.

“O que é a espiritualidade?”, questiona Rui Lomelino de Freitas. O historiador das ideias fez outra pergunta: “Olhamos para a criança como espaço onde pomos algo dentro ou ela tem já uma maravilha que deve ser acalentada?”.

Professor da Área de Ciência da ULHT, onde se desenvolve o projeto Religiões do Mundo (que leva à escola, em educação não-formal, uma abordagem científica sobre a religião e a espiritualidade), Rui Lomelino de Freitas vê a necessidade de se recriar no espaço educativo e formativo um “tempo para a liberdade, o afecto e a imaginação”, em contraponto “à oferta de grandes cargas horárias e muita ocupação”.

A irmã Carmen Bandeo, de nacionalidade argentina, entrou no debate também com uma pergunta: “Quantos adultos têm consciência de que já foram crianças?”

Lembrando que “a experiência fundante” da sua vida é a de que já foi “amada”, a religiosa católica, em representação da rede Talitha Kum de combate ao tráfico de pessoas, acrescentou que “no respeito e no amor pelo outro, joga-se e abre-se espaço para o encontro, o mistério de me conhecer a mim, ao diferente e ao Absoluto”. Em cenário de guerra, de tráfico, as irmãs da Rede Talitha Kum tentam também “ir ao encontro da outra pessoa, no caso, da criança, e que essa experiência toque, não deixando ambos indiferentes” fazendo a mudança.

No final, o coordenador da Área de Ciência das Religiões da ULHT salientou que “encontrar tempo e espaço para se ser criança, foi o apelo transversal deste debate”. Para Paulo Mendes Pinto, é evidente a necessidade de “descobrir a criança que há em cada um, de voltar a subir às árvores”.

Numa era marcada “pela rapidez e pelo deslumbramento da tecnologia, é urgente redescobrir um tempo para a criança olhar para dentro, fazer perguntas e pensar para lá do óbvio tecnológico e imediato”, acrescentou Joaquim Franco, coordenador do Observatório para a Liberdade Religiosa e moderador do debate. E aqui podem também ser importantes os educadores e formadores em contexto religioso/espiritual.

A sessão terminou com a homenagem do Terra Justa à rede Talitha Kum, tendo o presidente da Câmara Municipal de Fafe, Raúl Cunha, salientado o duplo esforço das religiosas consagradas no combate ao tráfico de pessoas: a abordagem direta, muitas vezes com risco de vida, e a estratégia de funcionamento em rede.

Foi o terceiro debate do Roteiro para o Diálogo Inter-religioso e Cultural, organizado pela área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, com o Observatório para a Liberdade Religiosa (OLR), promovido pela Karingana wa Karingana, num projeto apoiado pelo gabinete da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade. A iniciativa tem percorrido o país em paralelo com o Roteiro Cidadania em Portugal, organizado pela Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local, em parceria com o gabinete da SECI.

Os próximos debates estão previstos para a segunda quinzena de maio, em Beja (18 de maio) e em Tomar (23 de maio), este com o tema Peregrinos e Turistas – pela Cidadania, para o diálogo entre religiões e culturas.

 

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