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Quinta-feira, Maio 29, 2025

Privatização dos transportes ferroviários de passageiros?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Em rigor o processo de privatização dos transportes ferroviários está já admitido há muito tempo na organização vigente para os transportes terrestres, que implicou a prévia separação da CP – transportes e das infraestruturas – REFER, depois fundida com a JAE nas Infraestruturas de Portugal – IP.

Curiosamente no domínio dos transportes ferroviários de passageiros, temos apenas uma situação em que foi criada uma nova empresa – a Fertagus – para um serviço que não existia.

Quanto à CP o processo de privatização arrancou na vertente da carga com a entrada de um novo operador – Takargo – tendo a CP Carga, resultante de autonomização jurídica, sido privatizada por alienação à Medway. Recentemente veio novamente a falar-se de privatização num contexto que sugere provocação.

 

O Comboio da Ponte

A Fertagus foi criada por concessão a um privado, na esfera do Grupo Barraqueiro, para assegurar o transporte de passageiros entre Lisboa e Setúbal, com utilização do tabuleiro ferroviário da Ponte 25 de Abril. A wikipedia – Fertagus contém sobre a empresa um artigo que parece ter origem institucional. A concessão não abrange ainda o percurso até à Gare do Oriente, em Lisboa não se entende bem se por razões legais ou outras – tem-se falado de que seria necessário quadriplicar a via a partir de Roma – Areeiro – e recentemente tem-se dito que deveria ir até Praias-Sado para servir o Campus do Politécnico de Setúbal. As linhas e as estações são da IP que de modo geral é responsabilizada pelas avarias. Curioso é que o material circulante também pertença ao Estado, o que quer dizer que o apport da concessionária é basicamente a organização do serviço e a contratação / formação do pessoal. Aliás estará previsto no contrato de concessão que em caso de aplicação do instrumento de regulação colectiva de trabalho da CP o Estado compensará a Fertagus(i).

Durante muito tempo a Fertagus fez grande alarde da qualidade de serviço e do cumprimento dos horários, com elevados índices de satisfação dos clientes e foi capitalizando as reivindicações de reequilíbrio da concessão, através de extensões temporais desta. No conjunto o grupo rentabilizou a sua imagem empresarial através da sua participação na privatização da TAP, entretanto revertida, e anuncia pretender candidatar-se a outros serviços na rede nacional ferroviária.

Pixabay

A imagem da empresa do “comboio da ponte” ficou estilhaçada quando, depois de assinada uma nova extensão da concessão a Fertagus, anunciou um aumento do número de comboios que fariam o percurso em toda a linha, isto é, entre Roma-Areeiro e Setúbal , quando até aí a maioria das composições circulava entre Roma-Areeiro e Coina. Pelo que tenho podido observar, muito mais gente se desloca de comboio de Setúbal até Lisboa o que é positivo para os setubalenses, e, em abstracto, para o ambiente([ii). Quem toma o comboio a horas de ponta no Pragal / Almada ou Corroios / Seixal tem mais dificuldades e por vezes tem de esperar pelas composições seguintes, ou seja, queima mais tempo nos transportes. E as horas de ponta nos regressos têm sido também difíceis. A Fertagus tem tentado ajustar os horários e o número de carruagens por composição e tem reforçado a informação aos passageiros, mas é como na conhecida história de o velho, o rapaz , e o burro… E houve quem, em nome dos utentes (???), tenha proposto voltar aos horários antigos, o que se me afigura impensável.

O Ministério, ao aceitar estender a concessão e aumentar os padrões da prestação de serviço sem garantir que o material circulante era suficiente, cometeu nitidamente um erro. Tive ocasião de o dizer no Fb a alguém que fez uns posts sobre o “Socialismo”, a falta de investimento público, etc. Aliás alguns comentadores supostamente especialistas em transportes deixam crer que aqui estão apenas envolvidas empresas estatais e que o problema é a coordenação entre elas.

Uma vez ou outra, quem passou de manhã o rio confiadamente a caminho de um local na margem norte vê o seu regresso ameaçado por avaria na linha ou no material circulante. No “apagão” de outro dia terá sido pior, mas aí houve quem viesse de boleia dada por desconhecidos, o que em rigor deve ser visto como exemplar.

 

CP – uma provocação?

Miguel Pinto Luz conseguiu durante o ano que durou o primeiro governo de Luís Montenegro dar ideia que não seguia uma agenda de hostilização do sector público empresarial e de privatização de tudo o que pudesse ser alienado, que tinha sido a dos dois governos de Passos Coelho.

Depois do Governo Passos Coelho que se propôs ir para além da Troika, no caso concreto do Município de Cascais passou-se a ir para além das próprias preocupações sociais que sob o Governo de António Costa levaram à aprovação do eloquentemente designado PART – Programa de Apoio à Redução Tarifária nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O Município de Cascais aponta para a gratuitidade dentro do concelho e quando a candidatura de Moedas triunfa em Lisboa, pretende proporcionar aos munícipes melhores condições que as da Carris Metropolitana, sendo que a privatização da Carris (de Lisboa) não voltou a ser posta em cima da mesa.

Muito embora a CP tenha muito cedo adoptado uma organização interna por áreas de negócios não parece ter sido novamente posta em cima da mesa a recriação da “Sociedade Estoril” cuja concessão terminara em 1976 e fora integrada na CP entretanto nacionalizada, recriação que havia sido anunciada pelo Governo Passos Coelho em Novembro de 2011(iii). O então Ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos iniciou um processo de revitalização da CP escolhendo um novo Presidente do Conselho de Administração, voltando a fundir a EMEF na CP(iv), apontando para o alívio da dívida histórica e para a contratualizando a contrapartida das obrigações de serviço público. Em rigor já os governos de Cavaco Silva tinham, em relação a outras empresas públicas, assegurado o reequilíbrio financeiro através da assunção de passivos pelo Estado. O actual Ministro prosseguiu nessa via e foi até mais longe criando um passe extensivo à CP com âmbito nacional e assegurando desde logo a compensação desta.

Onde os sucessivos Ministros não têm conseguido controlar as situações é no relacionamento com o pessoal da CP. Salvo erro estávamos em modo de ministro Galamba quando, em 5 de Abril de 2023, publiquei no Jornal Tornado o artigo “As greves do quase desespero” onde não pude deixar de fazer algumas referências ao caso ferroviário. Tanto na I República como no Estado Novo, como aliás em outros países, os ferroviários estiveram frequentemente envolvidos em lutas laborais. Afonso Costa em tempo de greve fazia circular os comboios com ferroviários como escudos humanos, para dissuadir sabotagens. Durante a ocupação de França os nazis terão tido idênticas preocupações. No nosso mais benigno Estado Novo aquando das eleições de 1969 um dos candidatos da CDE foi recusado por estar envolvido numa “Comissão Nacional de Ferroviários” ilegal. O afastamento da unicidade sindical na lei abriu o caminho, na CP, a uma extraordinária proliferação de estruturas sindicais onde, para além dos sindicatos tradicionais, democráticos, independentes, etc. sobressaem denominações que indicam no essencial estar-se perante sindicatos representativos de categorias. O que aliás também se verifica, com menor incidência, em outros sectores de transportes.

De modo que para além das condições de trabalho dos seus filiados, a generalidade dos sindicatos também vigia as posições relativas destes no contexto da CP. E muito embora se compreenda que o Sindicato dos Maquinistas, autónomo, sobre cujo Fundo de Greve tive em tempos oportunidade de escrever um apontamento(v) tenha uma posição decisiva, da qual usa aliás com moderação, há outros trabalhadores que procuram defender a sua posição própria, como os da revisão comercial itinerante. A administração da empresa está de modo geral sujeita a orientações da tutela, ou de uma tutela dupla, sobre medidas com impacto na massa salarial e tem de articular a satisfação ou recusa das várias revindicações.

Perceba-se que neste contexto a influência da CGTP e da sua Federação de Transportes – a FECTRANS – (e por maioria de razão a do PCP) é muito reduzida pelo que é absurdo pensar que determinam as greves da CP. E convém também dizer que, sob pena de perda de influência, não  estão em condições de tentar travar greves ainda que duvidem da sua oportunidade.

Durante este período registou-se uma greve dos maquinistas de protesto pelo anúncio do Ministro António Leitão Amaro, como grande medida de controlo dos acidentes ferroviários, de que os maquinistas iam passar a ser sujeitos a controle da condução sob álcool. No entanto o Ministro de tutela conseguiu dar a ideia de que estava efectivamente empenhado na paz social da empresa até que, estando todas as negociações coroadas de sucesso, recusou a ultrapassagem do acréscimo fixado para a massa salarial com a razão – ou pretexto – de o governo se encontrar em gestão.

A insatisfação foi generalizada e vários sindicatos, entre os quais o dos Maquinistas (SMAQ) e o da Revisão Comercial Itinerante anunciaram calendários de greve próprios, havendo alguns dias comuns. De modo geral estas situações são atenuadas pela definição de serviços mínimos, mas a sentença do tribunal arbitral do Conselho Económico e Social, presidido por Jorge Bacelar Gouveia, personalidade do PSD, invocou razões de segurança para não decretar serviços mínimos, que só poderiam sê-lo afectando o núcleo fundamental do direito à greve. Tivemos assim alguns dias sem comboios – os maquinistas são um corpo altamente disciplinado – e grande perplexidade e indignação públicas, lançando-se sem mais que a greve teria sido decidida pelo PCP. Curiosamente o coordenador da FECTRANS, que apoiava a greve, explicava, com inteiro bom senso, que o que importava era obter um compromisso público de que o acordo seria aprovado.

Miguel Pinto Luz afirmava, contra toda a evidência, que a greve era explicada pelo contexto eleitoral, Luís Montenegro, falou da necessidade de “pôr cobro” e até a Ministra da Justiça, Rita Júdice, sobre a acção da qual, tudo visto e ponderado, me parece justificar-se um elogio, foi mobilizada para se pronunciar sobre a situação, apesar de se salvaguardar com o não ter lido a sentença de Bacelar Gouveia.

É muito possível que a recusa do Governo autorizar a assinatura do acordo alcançado entre a empresa e os sindicatos tenha sido uma provocação para criar um efeito eleitoral ou para favorecer uma alteração à regulação do direito à greve no Código do Trabalho. Afinal de contas os prazos dos pré-avisos de greve foram alterados, uma vez, por exigência do então Ministro Paulo Portas a pretexto de uma greve do Metropolitano de Lisboa.

Mas pode também estar a causa a intenção de se passar a manter uma actuação governamental agressiva em relação à CP, na sua actual configuração.

 

Um troglodita

No meio das vozes anti-greve distinguiu-se um conhecido jornalista que mantém um espaço de opinião no Expresso, o qual como “solução”, propunha falir a CP, enviar (sem dó nem piedade?) o pessoal para o desemprego, e recuperar apenas os que quisessem trabalhar, isto é, não fazer greves.

Li no Expresso as linhas em que escreveu esta coisa, não me incomodei a transcrever ipsis verbis. Registo a aversão que mostra a quem trabalha para ganhar a vida e os meios que propõe utilizar para vergar aqueles a quem odeia. Tanto quanto me lembro teve uma formação de base jurídica. Como será que se propõe “falir” uma empresa que alcançou recentemente o seu reequilíbrio económico e financeiro?

Mas é preciso vigiar esta gente, lá isso é(vi).

 

Notas

(i) Até agora não se verificou esta circunstância, os conflitos laborais que afectam a circulação na Fertagus, que terá uma política de formação e valorização que parece ser bem aceite, são apenas as greves do pessoal da IP.

(ii) Pessoalmente utilizo o comboio entre Foros de Amora / Seixal e Lisboa, mas posso viajar fora das chamadas horas de ponta.

(iii) Cfr. artigo de Cristina Carvalho “A linha de Cascais e a Sociedade Estoril “ publicado em https://eshtoris.hypotheses.org/1245 em 19 de Janeiro de 2015 e actualizado em 29 de Julho do mesmo ano.

(iv) A EMEF fora autonomizada da CP para ficar equidistante de todos os futuros operadores, passageiros e de carga.

(v) Fundos de greve

(vi) Uma nota pessoal: o meu avô Filipe da Silva foi maquinista da CP, residia no Entroncamento e fazia a linha da Beira Baixa. Fui várias vezes passar férias ao Entroncamento já ele estava, creio, reformado. Nunca se meteu em “sarilhos” mas reza a lenda familiar que o fez para dar apoio quando necessário às famílias dos irmãos que se meteram neles.

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