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Quarta-feira, Março 27, 2024

Produtividade: mudar o paradigma da organização do trabalho

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O sucesso da experiência islandesa da semana de trabalho de 4 dias e o aumento dos adeptos dessa solução no Japão, Espanha e Islândia.

James Suzman

Numa conjuntura económica e social ainda muito marcada pelo que poderá ser o rescaldo do pós-covid, com a lenta retoma da actividade económica e o expectável agravamento do desemprego, notícias sobre o sucesso da experiência islandesa da semana de trabalho de 4 dias ou o aumento dos adeptos dessa solução no Japão, Espanha e Islândia devem ser encaradas como contributos para a abordagem de qualquer debate sobre o paradigma da organização do trabalho, a par de outros, como o recém editado livro do antropólogo James Suzman – Trabalho: uma história de como utilizamos o nosso tempo (editora Desassossego) – que alerta para a urgente necessidade de rever hábitos de trabalho insustentáveis.

Apoiado num trabalho de décadas que realizou junto de bosquímanos da África do Sul, assegura este antropólogo que a ascensão da obsessão da produtividade a todo custo remonta aos primórdios da agricultura e que, primitivamente, os caçadores-recolectores que fomos não dedicariam mais de 15 horas semanais na procura e recolha de alimentos. Suzman destaca as mudanças que deram início às ideias que agora definem o trabalho moderno; não é apenas porque ficamos obcecados com a produtividade, mas porque mudamos fundamentalmente o nosso relacionamento com coisas como tempo, história, a terra e a comunidade.

O que aconteceu com a revolução agrícola foi que de repente vimos alargar-se desmesuradamente a jornada de trabalho porque as pessoas ficaram reféns de todo um conjunto de novos riscos; a escassez tornou-se uma coisa real e o trabalho uma coisa virtuosa e abrangente. Tudo se resume à psicose da escassez; para atenuar o risco criou-se a necessidade do excedente e a ideia que nunca se pode ter demasiado em reserva, o que de múltiplas formas traduz o nosso pensamento sobre o dinheiro e o que leva algumas pessoas a estarem preparadas para amealhar mais dinheiro do que alguma vez poderão gastar em vida.

O século XX trouxe o fim das longas jornadas diárias de trabalho dos inícios da Revolução Industrial e a quase generalização das 40 horas semanais distribuídas pelos cinco dias úteis de cada semana, mas embora melhorando as condições de trabalho de muitos milhões pessoas, depois de assistirmos à erosão do poder sindical e à crescente pressão para o prolongamento dos horários de trabalho (agravada recentemente com o recurso ao teletrabalho), chegamos ao ponto de necessitarmos de nova revisão do paradigma: “A preguiça é má, o trabalho é bom”.

Primeiro, porque o oposto de “trabalho” não é a “preguiça”, mas sim o “lazer” e este é indispensável ao desenvolvimento cognitivo, que foi o que permitiu à espécie humana desenvolver-se como o fez ao longo de milénios.

Segundo, o acumular de horas e horas de trabalho acaba por ter reflexos negativos na saúde e até na produtividade. E isto parece até empiricamente confirmado por um dos ensaios de aplicação da semana de quatro dias de trabalho, na Islândia, onde se concluiu que a redução de um dia de trabalho não teve efeitos negativos na produtividade.

Terceiro, a redução do horário de trabalho pode ser determinante no processo de recuperação das economias, pela conjugação dos efeitos de minimização do desemprego (mais pessoas a trabalhar significa maior poder de compra da sociedade) e do aumento do tempo de lazer (menos tempo a trabalhar trará acréscimo nos gastos nas actividades culturais e de lazer) indispensáveis ao processo de recuperação económico.

Por último, quando na nossa vizinha Espanha algumas grandes empresas já se aprestam a experimentar a solução da semana de quatro dias de trabalho a partir do próximo mês de Outubro, recorde-se que na já referida experiência islandesa a semana de trabalho se reduziu apenas para 35 ou 36 horas semanais (uma redução efectiva de apenas meio-dia de trabalho), facto que deverá tranquilizar os mais conservadores e preocupados com a famigerada produtividade.

Durante uma pandemia, quando todos somos forçados a repensar os dados de uma cultura alienada pelo trabalho e pela acumulação, como é a nossa, e levar em conta a desigualdade económica e a degradação ambiental que ela está a gerar, ouvir quem nos apresenta outras perspectivas que revelam não apenas como era a vida antes, mas também como ela ainda pode ser, não deve ser descartado como uma mera utopia, mas como mais um contributo para a construção do futuro.

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