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João de Sousa

Terça-feira, Maio 7, 2024

Sem Eleutério Sanches

Luís Fernando, em Luanda
Luís Fernando, em Luanda
Jornalista, correspondente do Tornado em Angola

… entrevistar Eleutério Sanches, para a Rádio Nacional de Angola, que era, então, a casa que servia nas minhas andanças por redacções e capitais do mundo como correspondente e enviado especial.

Pretendia a Rádio Nacional de Angola uma grande reportagem sobre os angolanos em Portugal, aquela diáspora sempre tão especial e de histórias por vezes alucinantes, e me tinha sido pedido que falasse com os que se tinham dado bem no mercado luso e os outros, os de fracasso às costas. Eleutério Sanches fazia parte, como todos o sabíamos, da nata dos bem sucedidos em terras lusas.

Procurei por ele com a ajuda do adido de imprensa da embaixada de Angola em Lisboa, o jornalista José Ribeiro, que dirige hoje o Jornal de Angola e, pelos seus apertos de agenda, percebi logo que o multiofícios angolano que eu queria entrevistar era infinitamente mais ocupado que a ideia que havia formado antes de partir de Luanda naquele avião abarrotado próprio do pico do Verão lisboeta.

Era minha intenção entrevistar primeiro dois ou três migrantes do grupo dos que se tinham dado bem em Portugal, por um simples capricho meu, talvez: não queria que os azedumes dos sofredores do submundo dos biscates e do trabalho na construção civil («os tenistas», como todos os conheciam, numa cruel ironia) me influenciassem de alguma maneira no modo como queria perceber a vida dos angolanos que haviam abandonado o país para tentarem o sonho dourado por entre noites de fado e castanhas assadas. Preconceito meu, mania ou lá o que isso fosse, o certo é que queria, primeiro que tudo, o perfume dos vencedores, e dali a minha insistência em ouvir, de entrada, Eleutério Sanches, segundo o meu levantamento, o mais bem sucedido de todos eles.

Contra as minhas previsões e não obstante a pressão in crescendo que exerci ao longo de três intermináveis dias úteis junto da embaixada angolana, o certo é que só tive sorte com os infelizes rapazes da construção civil, como aquele pedreiro nascido no Marçal e que me confessara que a sua decisão de abandonar Angola tinha tido uma única razão: juntar dinheiro para comprar uma moto Harley Davidson, sendo certo que, sem o tentar na lusa terra, poderia viver mil anos em Luanda e já sabia que terminaria os seus dias na terra sem o conseguir.

De cabeça cheia com as histórias amargas dos que viviam à míngua em Portugal – biscateiros de todos os calibres e «tenistas» de mãos calosas sem recuperação possível – e praticamente com o talão de embarque na mão para o voo de regresso a Luanda, foi quando consegui, finalmente, a mil vezes tentada entrevista com Eleutério Sanches, de quem queria escutar sobretudo confissões sobre o segredo para vender a preços tão estratosféricos os quadros que lhe saíam das mãos.

«Olha, caro Luís Fernando, continuo mal de tempo mas se estiveres este fim de semana por Lisboa, poderemos ver-nos na Lapa onde estarei a expor num evento da Câmara Municipal», disse-me ao telefone, na única vez, creio, em que a comunicação tinha sido directa entre «caçador» e «presa», como quem diz. Invejei-lhe, como rescaldo da conversa telefónica, a sobriedade da voz e o tom aristocrático de um professor com muitas lições para dar conquanto houvesse, do outro lado, tempo e plateia. Eu dispunha-me a isso, queria mesmo aprender com uma das maiores sumidades da intelectualidade produzida no nosso tempo.

Claro que no dia combinado e à hora certa, com uma antecedência de uns cinquenta minutos, lá estava eu naquele soberbo salão de Lisboa que não seria capaz de reconhecer hoje à distância de mais de vinte anos, para a minha primeira e única entrevista a Eleutério Sanches. Consegui reescutar toda a conversa, graças ao mecanismo incrível da memória, na noite em que, muito longe de Lisboa e de Luanda, preparado para plantar mangueiras num monte sem pintores por perto nem poetas, recebi a notícia de que Angola, Portugal e todo o universo que se comunica em português, não tinha mais, para todo o sempre, o génio singular de Eleutério Sanches, um luandense nascido para a pintura, o desenho, o teatro, a poesia e a música. Tinha 81 «curtos» anos!

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