Estreia de “Um Ivanov ou Ensaio sobre a mentira” de Anton Tchekhov, dia 14 de Janeiro às 19h30, n’A Barraca
Falamos a sério?
A 15 de Março de 2020 encerrámos as portas do Teatro Cinearte ao público e aos companheiros da Barraca, que até Maio se mantiveram confinados, suspendendo os epectáculos em cena: “A Torre de Babel”; as peças integrantes do nosso serviço educativo – “1936 – O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “A Farsa de Inês Pereira”; os ensaios de “Ivanov” e a preparação da dramaturgia de “O Elogio da Loucura”.
Durante o período da quarentena, naquela solidão aterradora, fui tendo sentimentos misturados sobre a minha querida obra de Tchekhov de que a razão parecia levar-me a desistir. Rearrumei a minha biblioteca e fui pensando. Reencontrei obras sobre as pestes, reli Camus, Artaud, Jack London, Poe.
A situação tendia para substituir o que tínhamos em mãos e pensar tudo outra vez. Mas uma reflexão mais calma levou-me às razões pelas quais eu queria tanto fazer esta peça.
Afinal a pandemia só era tão assustadora porque o estado do mundo já era assustador: a pobreza, o abandono dos fracos, o aquecimento global, a saúde, o ensino, a cultura a esbracejarem de incompreensão, nos países ricos e pobres, e o mundo a calar-se ou a mentir. Milhões de pessoas a morrerem de fome e outros milhares de milhões a serem gastos por muito poucos a inventar uma rota de fuga para um novo planeta sem riscos… Mentiras. Factos alternativos. Mentiras.
Então voltei aos temas da minha peça: a revelação da mentira e da calúnia assassina como crime e a condenação do mundo que exige uma impossível coragem aos pobres, aos doentes, aos velhos, aos deprimidos. A mentira que mata e a obrigação de resistência a quem não tem onde ir buscá-la.
E reavaliei aquela opinião que gritava de dentro das televisões “é preciso fazer tudo a partir da nova situação da pandemia” e repensei “é preciso fazer tudo a partir da valorização do ser humano”. É isso, o mundo tem de ser revisto pelos olhos agudos de Tchekhov, é preciso verdade, tolerância, generosidade e justiça.
E uma espada desembaínhada contra a mentira e a demagogia.
Um Ivanov ou Ensaio Sobre a Mentira
Em cena de 14 de Janeiro a 28 de Fevereiro de 2021
Horário: 5ª a Sábado às 19h30 / Domingo às 17h
Carta a Souvorine sobre Ivanov
Tudo o que Tchekhov quis dizer sobre o Teatro, dezembro 1888
Eu tinha a impressão que todos os escritores, todos os dramaturgos tinham sentido a necessidade de criar um ser melancólico e que o tinham escrito todos eles instintivamente ou seja sem ponto de vista. Com o meu projecto Ivanov eu atirei a esse alvo. Ivanov é um nobre, um universitário que não tem nada de notável. É uma natureza emotiva, ardente, que facilmente se deixa levar pelas suas paixões, honesto e direito como quase todos os nobres com cultura. Viveu na sua propriedade e teve lugar na assembleia territorial. Foi um homem activo assim que acabou os estudos dedicou-se com energia às escolas, aos camponeses, à exploração racional do território, faz discursos, escreve ao ministro, combate o mal, aplaude o bem, ama, não de forma fácil ,mas sempre, os trabalhadores, os doentes mentais, os judeus, ou até as prostitutas que chega a proteger. Carrega às costas fardos para os quais não tinha força. Aos trinta e cinco anos está cansado e farto. Diz de si:” se me olharem só pelo lado de fora, a leitura é terrível, nem eu mesmo percebo o que se passa comigo. “Quando alguém dá por si nessa situação e é desonesto ou estreito de vista normalmente faz recair a culpa sobre o meio ou passa a considerar-se “um dos que estão a mais” um Hamlet, e chega a contentar-se com isso. Ivanov fala de uma falta que terá cometido, e o sentimento de culpa vai crescendo dentro dele a cada novo choque com a sociedade: “Dia e noite a minha consciência tortura-me, sinto-me profundamente culpado, mas não compreendo nunca qual é na verdade a minha culpa…”Ao esgotamento, ao tédio e ao sentimento de culpa junta-se um inimigo. A solidão. Ninguém tem nada a ver com a mudança que ele sente operar-se em sim mesmo. Está só. Invernos longos, noites longas, um jardim deserto, divisões desertas, um conde rabugento, uma mulher doente…Nenhum lugar aonde ir . Todas os minutos a mesma questão o tortura : que fazer de si e consigo? As pessoas como Ivanov deixam de resolver os problemas, afundam-se no seu peso. A decepção, a apatia, a fragilidade nervosa e o cansaço são a consequência inevitável de uma grande exaltação e essa exaltação é própria da juventude.
Passemos ao doutor Lvov. É o tipo acabado do homem honesto, direito, ardente, de espirito tacanho. Ele olha cada acontecimento, cada pessoa, através do seu quadro estreito e julga tudo de forma preconceituosa. Na minha imaginação Ivanov e Lvov apresentam-se como pessoas vivas. Digo-o de alma e consciência tranquila, sinceramente estes homens não nasceram na minha imaginação vindos da espuma do mar, de ideias preconcebidas, de “intelectualismos” ou do acaso. Eles são o resultado da observação e do estudo da vida.
Se o publico sair do Teatro com a convicção que os Ivanovs são uns malandros e os doutores Lvovs são grandes pessoas, só me resta retirar-me e enviar ao diabo a minha pena.
Arche Editeur, 2007
Trad. Maria do Céu Guerra
Ficha Técnica
- Título: Um Ivanov ou Ensaio Sobre a Mentira
- Duração: 2h
- M/12
- Dramaturgia e encenação: Maria do Céu Guerra
- Tradução: Sinde Filipe
- Música original: António Victorino de Almeida
- Elenco: Adérito Lopes, João Maria Pinto, João Teixeira, Maria do Céu Guerra, Rita Soares, Ruben Garcia, Samuel Moura, Sérgio Moras, Susana Alves Costa e Teresa Mello Sampayo
- Assistentes: Vasco Lello e João Teixeira
- Direcção técnica e desenho de luz: Vasco Letria
- Equipa técnica de operação: Ruy Santos e Ruben Esteves
- Modista: Alda Cabrita
- Costureira: Zélia Santos
- Cartaz: Luís Henriques – O Homem do Saco
- Fotografia: Maria Abranches
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