No debate televisivo eleitoral os dois líderes falaram de TGV. Um deles disse que quer fazer um comboio de alta velocidade entre Lisboa e o Porto. O outro não. O outro não quer fazer nada, é tabu.
No entanto, aquele que o quer fazer diz que não é TGV, é apenas alta velocidade. Bravo. Há dias atrás, o tema voltou. Entrevistado pela TVI o mesmo líder que queria fazer o comboio de alta velocidade que não é TGV explicou, com aquele ar de domínio técnico do assunto que torna tudo evidente e simples, que o TGV só se justifica para cidades com distâncias entre si de mais de seiscentos quilómetros como, por exemplo, Paris e Bruxelas. Bom, a distância entre estas duas cidades é de trezentos quilómetros e a distinção entre alta velocidade e TGV não existe.
As palavras do líder político que diz que quer fazer um linha de alta velocidade sem ser TGV parecem sugerir que a sua proposta seja a de melhorar o traçado da linha de modo a que o percurso entre Lisboa e Porto possa ser feito em menos de duas horas. Essa solução parece-me não só errada, mas também impossível. As razões merecem, uma vez mais, ser explicadas. Primeiro, para fazer a viagem em menos de duas horas seria necessário que a linha do norte fosse renovada no seu traçado de modo a permitir uma velocidade máxima de 210 km por hora (de modo a obter uma velocidade média de 163 km por hora). Isso significaria refazer 77% da linha. Dois terços. O custo estimado seria de 3 000 milhões de euros para ganhar cinquenta minutos[1]. Por outro lado, ainda que o traçado permitisse essa velocidade, ela dificilmente seria atingida em razão dos tráfegos heterogéneos – comboios rápidos, comboios urbanos e comboios de mercadorias, todos convivem na mesma infraestrutura. A consequência é que nem os comboios rápidos são rápidos, nem os urbanos são em quantidade suficiente, nem os de mercadorias têm boas condições de operacionalidade. Em síntese, o problema da linha não é só o traçado, mas a capacidade para suportar todas estas tipologias de tráfego que têm exigências muito diferentes.
Estas razões, aliás, explicam o fracasso continuado do projeto da chamada modernização da linha do Norte, que sempre conduziu a investimentos elevados e a melhorias pouco significativas. Custos excessivos para melhorias marginais. Trinta anos depois, a nova estratégia parece ser mais do mesmo. Se não deu resultado, tentemos de novo, agora com mais dinheiro e com mais entusiasmo. Erro de diagnóstico – o principal problema não foi investir pouco, mas investir mal.
É de há muito meu convencimento que não haverá nenhuma melhoria significativa na rede ferroviária do País sem uma rede de alta velocidade. O caso mais evidente – e, admito, o mais importante – é justamente o da linha do Norte, entre Lisboa e o Porto, cujo problema de saturação me parece insolúvel sem que seja autonomizada uma nova linha de alta velocidade exclusivamente dedicada a passageiros. Todavia, como julgo que está cada dia mais claro, o problema do TGV em Portugal não é um problema técnico mas político ou, melhor dito, um problema de preconceito político.
O primeiro preconceito é uma entediante rotina portuguesa – o mito do elefante branco. O mesmo argumento foi levantado contra o Alqueva, contra o novo Aeroporto e contra tudo o que seja projeto público, modernizador e ambicioso. A política está cheia destes personagens que fazem da “cautela” uma carreira e passam toda a sua vida a explicar aos outros que o melhor é não fazer nada. Não correr riscos. No entanto, depois de todos os estudos feitos e em face da experiência internacional é preciso dizer, de novo, que nada fazer tem custos – e o principal deles é ficar para trás no desenvolvimento económico. Insistamos, uma vez mais: o TGV é um dos projetos mais importantes do ponto de vista da mobilidade nacional; um dos projetos mais estruturantes de desenvolvimento económico, tecnológico e social; um dos projetos ambientais mais importante na área dos transportes, com uma significativa redução das emissões de carbono (é absolutamente espantoso que em 2018, a TAP tenha transportado cerca de 700 mil passageiros através de uma ponte aérea).
Mas ponhamos as cartas na mesa. O verdadeiro problema do TGV nada tem a ver com a comparação de alternativas, com o debate acerca dos custos e benefícios do projeto ou com as dúvidas da sua rentabilidade, que está mais que demonstrada. O problema tem apenas a ver com o governo Sócrates . O problema reside no facto deste projeto se ter transformado numa bandeira daquele governo. A extraordinária história política do projeto vem do tempo em que a direita política começou por o defender, ainda no governo Durão Barroso. Depois, na oposição, resolveu critica-lo e, mais tarde, já de novo no governo, decidiu suspende-lo, apresentando-o como símbolo de despesismo. Mas era preciso ir ainda mais longe. O resto do trabalho sujo foi feito pelo Ministério Público que, conscientemente, criminalizou o projeto, incluindo-o na acusação do Processo Marquês.
Não me quero afastar muito da decisão que tomei de não me pronunciar sobre o processo enquanto decorre a fase de instrução, mas tenho-me apercebido de que poucos conhecem verdadeiramente a acusação. E é preciso que a conheçam. Comecemos por dizer que o Ministério Público não me acusa, nem ao governo, de ter favorecido qualquer concorrente no concurso. A acusação não é essa. A acusação, na verdade, é a de que eu como Primeiro Ministro terei manipulado os Ministros de modo a que fosse introduzida no contrato de concessão do TGV uma cláusula que daria ao vencedor do concurso um direito a ser indemnizado de forma desproporcional no caso de o contrato não obter o visto do Tribunal de Contas. Confuso? Repito – cláusula, manipulação de ministros, indemnização. Volto a explicar. A tese do Ministério Público é que eu como Primeiro Ministro terei andado anos e anos a fingir que queria fazer o TGV, quando, afinal, o que queria era que o concurso fosse chumbado pelo Tribunal de Contas, de modo a que os concorrentes tivessem uma indemnização a que não teriam direito se a cláusula não existisse. Isso mesmo – se ninguém foi favorecido, se nem eu, nem nenhum ministro interveio na independência técnica do júri do concurso então algum plano oculto deveria ter existido – ah, a cláusula. Foi, então, a cláusula. Eis uma acusação que parece saída de um romance policial que tem a vantagem de ser escrito do fim para o princípio – há certamente um crime, resta agora descobrir qual. E quanto mais surpreendente melhor.
Em 2016, um Tribunal Arbitral considerou que a cláusula em questão não resultou de nenhum impulso político, não é ilegal, não é prejudicial ao interesse público e resultou de uma negociação informada, diligente, racional e vantajosa para ambas as partes. O Tribunal Arbitral também conclui que a principal razão do chumbo pelo Tribunal de Contas foi a vontade do governo que me sucedeu de que isso acontecesse. Esse governo não só declarou publicamente que desistia do projeto, como também não fez o devido cabimento orçamental. Esta sentença já transitou em julgado. Bem vistas as coisas, o que mais impressiona nesta história é que a cumplicidade entre Ministério Público, o jornalismo e a política tivessem sido capazes de transformar uma acusação estapafúrdia numa acusação aparentemente séria. Acusação essa que não precisa de ser acompanhada de qualquer indício ou prova. O insulto basta.
Regressemos ao projeto TGV e olhemos as coisas assim. Há trinta anos a viagem mais rápida de comboio entre Lisboa e Porto era feita em 3 horas. Hoje, trinta anos depois, a mesma viagem demora 2h e 50 m. Nestes mesmos trinta anos o estado investiu milhões e milhões na linha do Norte para reduzir a viagem em dez minutos. Também há cerca de trinta anos, por ocasião da Expo 92, Espanha inaugurou a sua primeira ligação em alta velocidade entre Madrid e Sevilha. 1992. Isto quanto ao passado e aos últimos trinta anos. Quanto ao futuro e aos próximos trinta, o que nos prometem é que nada de novo virá a não ser o TGV espanhol que já terá chegado a Badajoz e a Vigo. O que nos conduz ao significado político do tabu sobre o TGV – ao momento em que a política se torna refém do Ministério Público, aceitando que seja este a decidir o que deve e não deve ser feito para o desenvolvimento do País. Eis o verdadeiro interdito. Eis o ponto a que chegámos.
[1] – Estes números são referidos por João Cunha em artigo no jornal ECO de 18 de Setembro de 2019
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
Artigo publicado também no DN
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