Parece cada vez mais fácil antecipar algumas das mudanças que a covid-19 está a tornar inevitáveis. Assim, antever uma redução na mobilidade dos cidadãos e um definhamento no sector do turismo, parece obrigatório, ao mesmo tempo que talvez a constatação prática dos efeitos da interrupção da actividade económica sobre a poluição venha a abrir as perspectivas de alguma reorientação para o conceito de economia verde.
Menos pacífica, mas não menos lógica, será a tendência para a desmaterialização da economia, para a digitalização da moeda única e para uma reforma radical do sistema financeiro internacional; se esta acarretará ou não uma mudança de paradigma e o fim do modelo liberal que temos conhecido é outra questão.
O desafio nas actuais circunstâncias é pensar de forma equilibrada e manter a maior objectividade possível na tentativa de perceber o que acabará por emergir do pânico geral. O resultado final dependerá da escala e gravidade da pandemia, mas várias são as razões que apontam para que no final da crise o mundo não regresse à situação anterior. Entre estas destaque-se:
- primeiro, o facto de há algum tempo a esta parte se notarem sinais de preparação para a substituição do actual sistema financeiro disfuncional que aguardariam apenas o momento certo para o fazer;
- segundo, a propagação da covid-19 veio introduzir novos hábitos, tanto mais que a situação de crise estará para durar, impondo um conjunto de medidas de precaução, desde o teletrabalho até ao encerramento das fronteiras, e a necessidade de reorganização da economia para funcionar segundo novos hábitos e novas condições, nomeadamente a reorganização das cadeias de aprovisionamento no sentido de modelos mais sustentáveis e de maior proximidade;
- por último, não será estranho que venham a ser implementadas medidas de longo prazo, que vão desde novas regras de higiene urbana, à consolidação dos sistemas de saúde e à inclusão de políticas orientadas para a redução da mobilidade e do contacto físico.
A actual crise sanitária poderá abrir novas perspectivas de reorganização social, tanto a nível local como global, e fortalecer os órgãos coordenadores de políticas regionais e globais. Ao nível puramente europeu, os efeitos a que já assistimos a nível económico – a covid-19 está a gerar uma crise transversal a todas as economias e de uma dimensão ainda difícil de prever – poderão abrir perspectivas que reforcem a importância de soluções e actuações ao nível da UE, algo que nem a crise migratória nem a crise terrorista conseguiram fazer.
Menos positivo, mas quase inevitável, poderá ser o regresso da inflação, originada pela indispensável reorganização de algumas das redes de produção e distribuição, mesmo que o petróleo não sofra grandes oscilações no preço, e pela adopção de um modelo de financiamento que não deverá assentar na criação de moeda por via da concessão de crédito. A par com este efeito, outro poderá surgir centrado no sistema financeiro, ou melhor na transferência da sua liquidez para os inevitáveis planos de reconstrução económico-financeira de que o espaço europeu carece. Neste capítulo, o efeito inflacionista poderá (deverá) ser atenuado pela orientação dos investimentos para projectos de modernização de infra-estruturas, como as ferrovias (investimento há muito indispensável para a ligação por alta-velocidade entre as capitais da UE e solução menos poluente que as actuais ligações por via aérea), a saúde (cuja urgência a covid-19 dispensa de explicar), a esfera social (indispensável no apoio às famílias e ao relançamento das economias) e a defesa (cujo abandono tem ditado a subalternização da afirmação geoestratégica da UE), ou numa clara e determinada aposta no desenvolvimento da IA.
Seja através de um processo de fusões, ou outro, o sistema bancário europeu deverá emergir desta crise de forma absolutamente distinta da actual. Recordando que já em finais do ano passado era sabido que os 36 maiores bancos europeus em conjunto valem menos que a Apple ou a Microsoft e pensando na forte ameaça que representa a bem conhecida fragilidade do Deutsche Bank (aquele que ainda será o segundo maior banco europeu, que oportunamente mereceu dois comentários do José Mateus, publicados em 2016 no Tornado – Deutsche Bank, o espectro que ameaça engolir a Europa e BCE confessa ter favorecido o Deutsche Bank nos “testes” do Verão – e o que escrevi em Julho do ano passado quando apontei a possibilidade do Deutsche Bank ser o próximo “Lehman Brothers”), podendo isso significar o enfraquecimento face a chineses (onde têm sede os quatro maiores bancos mundiais) e americanos (cuja moeda controla ainda o sistema internacional de pagamentos) e até face ao BCE.
Deste deseja-se um papel ainda mais interventivo e deve esperar-se até, para salvaguarda do interesse geral dos cidadãos da zona euro, uma profunda alteração que passe pela emissão directa da moeda necessária ao esforço de recuperação das economias europeias, proporcional aos estragos criados pela covid-19, e à efectiva resolução da crónica escassez de liquidez resultante do permanente recurso aos mecanismos de crédito proporcionados pelo sistema financeiro, algo que não foi feito para resolver a crise das dívidas soberanas e que aparenta continuar afastado dos cenários políticos que se desenham em Bruxelas, pois o fundo de recuperação de 500 mil milhões de euros, propostos pela França e pela Alemanha e a que continuam a opor-se a Áustria, a Holanda, a Dinamarca e a Suécia, assenta no recurso a uma linha de crédito a ser reembolsada solidariamente por todos os estados-membros.
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