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Sexta-feira, Setembro 6, 2024

A saúde oral como cavalo de Tróia: a futura Lei de Bases da Saúde

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

É importante que o país tenha uma nova Lei de Bases da Saúde, porque aquela que vigora actualmente tem portas e alçapões pelos quais tantas vezes a direita quis desvirtuar o SNS.”

António Costa, 2018[1]

A futura Lei de Bases da Saúde constitui uma boa oportunidade para refletir sobre a organização dos cuidados de saúde (oral) no nosso país. É importante fazermo-lo sem dogmas e com a responsabilidade político-social que a todos os profissionais de saúde incumbe, designadamente, para a melhoria da saúde da população.

A saúde oral configura um caso especial dentro da organização dos cuidados de saúde pois é uma área de intervenção médica que se encontra, maioritariamente, relegada para o sector privado. Esta organização do “sistema de saúde” promoveu uma separação artificial entre a saúde oral e a saúde geral que é tão artificial como falsa: o indivíduo é uno e a saúde oral faz parte integrante da saúde geral em óbvia interdependência orgânica.

Características dos cuidados de saúde oral

Entretanto, as características dos cuidados de saúde oral configuram exemplos paradigmáticos em diversos aspectos:

  1. A falta de investimento público nesta área de saúde reflecte-se na insuficiência de médicos dentistas e de estomatologistas no Serviço Nacional de Saúde (SNS). De facto, mesmo os casos agudos são frequentemente encaminhados pelas próprias urgências hospitalares para o sector privado devido a falta de resposta pública na valência de medicina dentária-estomatologia. É assinalável que quando encaminhados pelos cuidados de saúde primários os tempos de espera por uma primeira consulta de estomatologia variem entre 37 dias (ARS LVT) e 202 dias (ARS Algarve)[2].
  2. Decorre que os efeitos sociais desta insuficiente prestação pública é evidente: Portugal tem figurado sistematicamente no ‘top 3’ das desigualdades económicas referentes à utilização de consultas de saúde oral, evidenciando um gradiente acentuado de utilização conforme os rendimentos (OCDE). O mesmo será dizer que os mais ricos usam os cuidados de saúde oral, enquanto os menos ricos e quem mais precisa não os usa por dificuldades financeiras.
  3. O abandono desta área de saúde às “forças do mercado” originou, primeiramente, as assimetrias territoriais na distribuição dos profissionais, densificando-se, estes, nos grandes polos urbanos com consequente desguarnecimento das zonas semi-urbanas/rurais e, secundariamente, a subsunção às tendências monopolistas dos grandes grupos económicos que “secam” as unidades de prestação de cuidados de saúde de pequena e média dimensão.

Os governos do Partido Socialista têm realizado aproximações à resolução do problema de acesso à saúde oral. Durante o mandato de José Sócrates foi implementado o denominado “cheque-dentista” e durante a atual legislatura foi iniciado o programa “Saúde Oral para todos” integrado no projeto SNS + Proximidade.

Pese embora ambas as iniciativas sejam prestimosas e tenham, na generalidade, cumprido os seus objetivos táticos, importa perguntar, agora que se prepara a futura Lei de Bases da Saúde, se estas são suficientes para melhorar, de facto, a saúde (oral) da população.

Insuficiências

Insuficiências das iniciativas até agora adoptadas:

  • O denominado cheque-dentista é uma estratégia de “voucherização” dos cuidados de saúde que fomenta a procura e, embora promova a utilização dos cuidados, não resolve o problema de saúde das populações. O “cheque-dentista” apresenta o efeito de consciencializar a população para a necessidade de obter cuidados de saúde oral, mas, amargamente, não inclui a integralidade desses mesmos cuidados fazendo depender da capacidade económica a completude do plano de tratamento aquando de casos mais complexos. Simultaneamente verifica-se que a maior parte da população não tem direito ao cheque-dentista, nem, tampouco, direito a cuidados de saúde oral acessíveis e financeiramente comportáveis.
  • O programa “Saúde Oral para todos” visa “promover e facilitar o acesso da população a cuidados de saúde dentários” no SNS [3] através da contratação de médicos dentistas. Porém, quando se aborda o assunto da saúde oral haverá que reconhecer que esta não se esgota nos denominados cuidados dentários, constituindo-se como um campo de intervenção médica muito mais amplo e necessitado de integração, efectiva e transparente, no SNS.
  • Torna-se pertinente lembrar que o acordo-quadro apresentado pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde se assemelha a um contrato de empreitada no qual as atribuições dos médicos dentistas estão limitadas às especificações de um caderno de encargos[4]. Acresce que os contratos de “aquisição de serviços” propriamente ditos obrigam a confidencialidade não se sabendo, portanto, quais os termos reais da prestação dos cuidados, fomentando-se, assim, um total obscurantismo contratual que se afigura em tudo contrário aos princípios da transparência, do escrutínio democrático e da prestação pública de cuidados de saúde.   

A futura Lei de Bases da Saúde é uma oportunidade ou uma ameaça?

A natureza, a estabilidade, a universalidade e a generalidade dos cuidados de saúde (oral) dependerá, em larga medida, da futura Lei de Bases da Saúde, daquela que vier a ser aprovada pela Assembleia da República. O debate será tanto mais difícil e pouco proveitoso quanto nos fecharmos nas “capelinhas” das profissões/especialidades ou nos digladiarmos sobre as intrigas palacianas promovidas por personalidades mediáticas (curiosamente, em muitos casos, da mesma área partidária!).

No primeiro caso corre-se o risco de promover uma organização de cuidados de saúde desvirtuada por pressupostos corporativos, no segundo caso é pouco mais do que calhandrice de diferentes lóbis. Em ambos os casos é negar o debate sobre o essencial, seja por insuficiência intelectual, por distracção política ou por defesa de interesses alheios à saúde da população.

Importa, antes, situar o debate na substância concreta, leia-se, melhorar os níveis de saúde (oral) da população, sem sectarismos profissionais ou políticos, de forma economicamente sustentável. Recorde-se que existem cinco documentos em debate, apresentados por ordem cronológica: o projecto de Arnaut e Semedo assumido pelo BE (“Salvar o SNS”), o projecto do PCP; a proposta de Lei do Governo e os projectos do PSD e do CDS. As primeiras três propostas afirmam o modelo social Português, enquanto ambos os partidos da direita ressuscitam a fórmula neoliberal do estado como financiador do sector privado.

3 eixos de análise que a futura Lei de Bases da Saúde poderá implicar nos cuidados de saúde

Ex-Ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes que apresentou o programa “Saúde Oral para todos”

Escolheram-se 3 eixos de análise para avaliar os méritos e os alçapões que a futura Lei de Bases da Saúde poderá implicar para o Séc. XXI no que aos cuidados de saúde (oral) se refere:

1. Responsabilidade do Estado na garantia do direito à protecção da saúde

Quanto à responsabilidade do Estado multiplicam-se, de um lado, as acusações de ideologização do debate sobre a organização dos cuidados de saúde e, do outro lado, entre os defensores da democracia social, teorizações excessivamente nuancés sobre as possibilidades constitucionais de configuração do Estado social.

Na prática a pergunta fundamental é simples:

Ambiciona-se um Estado que garanta o direito à protecção da saúde, como sector estratégico nacional, através da sua própria prestação de serviços (propostas do BE, PCP e Governo)? Ou pelo contrário, aceita-se um Estado em que a garantia do direito à protecção da saúde é interpretada como “privatizável” remetendo-se o Estado, em essência, ao financiamento e à regulação do sector privado (propostas do PSD e CDS)?

Olhando para o exemplo da organização dos cuidados de saúde oral parece fácil concluir que o cumprimento dos papeis de financiador e de regulador não é suficiente para garantir a universalidade do acesso e, consequentemente, o cumprimento do direito à igualdade na protecção da saúde. O denominado “sistema de saúde”, tão enaltecido por certos sectores, falhou clamorosamente nesta área: falhou na universalidade de acesso e falhou na integração e compreensividade de cuidados. De facto, a evidência confirma a necessidade de que a saúde oral faça parte da carteira básica de serviços públicos, com profissionais e infraestruturas, para que exista efectiva resolutividade nos processos de diminuição da doença e de promoção da saúde.

Embora apenas o projecto do PCP mencione especificamente os cuidados de saúde oral (Art 9º. n.2, al. d), os três diplomas apresentados no Parlamento prevêem a possibilidade de convenção com o sector privado aquando de insuficiências no SNS. Seria interessante que na futura Lei de Bases da Saúde a proposta do governo fosse articulada com as formulações do BE (Arnaut-Semedo) e do PCP para que a redacção “condicionadamente à avaliação da necessidade” (Base 21) diminuísse de ambiguidade e explicitasse a vontade de aumento da resposta através da prestação pública (BE: Base XI, nº3 e PCP: Artº45, n.1).

2. Descentralização – municipalização

Um dos aspectos essenciais para a efectivação dos cuidados de saúde públicos é a estrutura organizacional do SNS. Fazer depender a disponibilidade de valências de saúde – no caso a saúde oral – de protocolos com as autarquias, como acontece no projecto “Saúde Oral para todos”, pode fazer parecer que se aceita a secundarização desta especialidade ao anuir-se que (afinal) não é “para todos” porque estará submetida à capacidade autárquica. Acresce que a aparente “naturalidade” com que se permite a institucionalização desta forma municipalizada de organização de cuidados, poderá ser erradamente interpretada como aquiescência (mesmo que tácita) à instauração de um SNS potencialmente a 308 velocidades para qualquer área médica no sector público.

Será uma oportunidade perdida se se permitir que a saúde oral venha a ser utilizada como exemplo de fragmentação “útil” do SNS. É candente a necessidade de soluções mais duradouras e estáveis que contribuam para a compreensividade dos cuidados de saúde, sem que se perpetue a dissociação saúde oral vs saúde geral por via de artifícios burocrático-administrativos. Não podem os médicos dentistas, por aceitação “conveniente” ou alheamento acrítico, contribuir para a pulverização pseudo-descentralizadora do SNS.

Ainda que a proposta do Governo não responda adequadamente à matéria da organização administrativa e territorial poderá ser evitado o alçapão da municipalização atentando-se aos projetos do BE (Arnaut-Semedo) e do PCP, os quais apresentam soluções organizativas que permitem assegurar a integridade de um SNS coeso e territorialmente coerente.

3. Carreiras e participação dos profissionais de saúde

As carreiras profissionais são a “trave mestra” do SNS, como afirmou António Arnaut. São-no por motivos histórico-sociais associados à participação na edificação do SNS, mas também porque o corpo de profissionais de saúde dedicado ao serviço público é aquele que investe diariamente no SNS o seu saber e empenho para que haja um serviço universal, geral e (tendencialmente) gratuito no momento da prestação.   

Quando os médicos dentistas reclamam pelo reconhecimento de uma carreira é importante salientar que aludem à vinculação pública, à contratação coletiva e à sujeição a procedimentos concursais de ingresso e de progressão. A instituição de uma carreira “independentemente da relação jurídica de emprego” (formulação usada pelo PSD-CDS, à semelhança do documento que os inspirou) é ineficaz e vazia de competências diferenciadas, mesmo que lhe possam ser atribuídos graus e títulos glamorosos. A definição de uma carreira não é compatível com a generalização do modelo de contratualização via acordo-quadro “de empreitada” ou com o isolamento face aos outros profissionais intervenientes na saúde (oral).

Seguramente não serão os médicos dentistas a aceitar, por imprudente análise, condições de excepcionalidade laboral, à parte dos profissionais integrados no SNS propiciando, assim, que se fragmentem (ainda) mais as carreiras profissionais do sector público da saúde. A proposta do governo prevê a organização de uma força de trabalho planeada e estruturada em carreiras, mas ainda contém a fragilidade de não mencionar a possibilidade, quer de progressão em todas áreas profissionais, quer de participação dos profissionais de saúde na gestão dos serviços o que, complementarmente, as propostas do BE (Arnaut-Semedo) e do PCP explicitam podendo, também neste domínio, ajudar a fechar o alçapão.

A defesa da saúde oral não pode ser utilizada como cavalo de troia, de bojo recheado de médicos dentistas, para a descaracterização do SNS. A saúde é una e por isso a futura Lei de Bases da Saúde deverá garantir inequivocamente o desenvolvimento do SNS enquanto instrumento público de prestação de cuidados; com coesão organizacional, com coerência territorial e integrador da pluriprofissionalidade em carreiras com possibilidade de participação na gestão e na definição das políticas, garantindo, assim, a universalidade, a generalidade e a (tendencial) gratuitidade constitucionalmente previstas.

Em nome da futura Lei de Bases da Saúde para o Séc XXI junto-me a António Arnaut na pergunta:

vamos permitir que subsista o fosso em cujas águas turvas chafurdam os tubarões, entre os privilegiados da sorte e os deserdados da fortuna, entre os pobres e os ricos, entre a cidade e o campo?

[1] António Costa em RTP notícias de 20 de Dezembro de 2018: Saúde. Costa defende que nova Lei de Bases cobre “alçapões”.

[2] Rede de Referenciação Hospital: Estomatologia. Aprovada por despacho do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde a 15 de Novembro de 2017.

[3] Governo apresenta programa “Saúde Oral para todos”. Comunicado a 18 Setembro de 2108.

[4] Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Caderno de encargos:

Acordo quadro para a prestação de serviços de medicina dentária às instituições e serviços do serviço nacional de saúde, CP 2017/115.


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