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Sábado, Outubro 5, 2024

Bündnis Sahra Wagenknecht

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Desde há um ano que “Sahra Wagenknech” tem vindo a lançar alguma perturbação na política europeia. Já há na Internet alguns bons textos sobre esta personalidade, embora a maioria das peças da sua autoria sejam em alemão, e estão disponíveis na Wikipedia artigos, melhores do que a média, que têm vindo a ser utilizados e em que também me basearei.

Há fortes emoções em algumas hostes, gente a gritar contra os “extremistas”, ou a afirmar que Putin já tem dois braços na Alemanha – a BSW e a Afd – mas julgo que se ganhará em, por enquanto, prescindir de grandes teorizações sobre o fenómeno e procurar enquadrá-lo em contextos mais amplos e para isso tentarei chamar a atenção para o regime político vigente na Alemanha Ocidental – República Federal Alemã (RFA) – a partir de 1949 e depois alargado a toda a Alemanha com a reunificação, o regime político vigente na Alemanha Oriental – República Democrática Alemã (RDA) entre 1949 e, apenas em breve referência, ao quadro parlamentar da União Europeia. Recorrerei a alguns artigos por mim já publicados no Jornal Tornado e a alguns links sobre personalidades hoje esquecidas.

Abordemos em primeiro lugar o regime político vigente na Alemanha Ocidental a partir de 1949 e posteriormente alargado a toda a Alemanha com a reunificação. Mas será que há lugar a falar em regime? Então não é uma democracia? Bom… as democracias não são todas iguais e o regime assente numa “Lei Básica” que nunca chegou a ser sucedida por uma verdadeira constituição, e que foi delineada para impedir que viesse a ser destruído “por dentro” como o foi a Republica de Weimar. Deste modo: o peso dado à existência de uma Federação, com amplas garantias para os Estados territoriais e para as cidades – estado; um sistema complexo de eleição da principal câmara do Parlamento Federal – Bundestag – que garantia uma proporcionalidade integral a partir de uma percentagem mínima exigida para a conversão de votos em mandatos(i); um sistema de vigilância federal de organizações ou mesmo individualidades suspeitas de extremismo, que levou em 1956 à proibição pelo Tribunal Constitucional do Partido Comunista da Alemanha (KPD) que obtivera nas eleições de 1949 um total de 1 361 706 votantes (5, 74%) e de 15 deputados federais(ii); um controlo estreito da representação dos trabalhadores no domínio laboral, e um grande condicionamento do recurso à greve, proibindo-se designadamente as greves políticas e de solidariedade (condicionamento que foi transposto para a Lei da Greve aprovada em Portugal em 1974 e ultrapassado pela Constituição de 1976); amplo recurso a antigos quadros nazis inclusive a ex – SS , que,  articulados entre si – vieram a participar numa academia de gestão criada no Harz, o que já tive ocasião de tratar em “Contributos de Nazis para a Ciência da Gestão”, recensão publicada em 13 de Março de 2024 no Jornal Tornado, sendo que algumas destas personalidades obtiveram posições destacadas na CDU – União Cristão Democrata, no Partido FDP – Partido Liberal e até no SPD – Partido Social Democrata.

O reforço do SPD sobretudo com o acesso de Willy Brandt, antigo burgomestre de Berlim Ocidental, ao poder permitiu que se realizasse pela primeira vez um encontro entre governantes da RFA e da RDA (na altura o primeiro ministro desta Willy Stoph) – em Erfurt e que a RFA concertasse com a Polónia o reconhecimento da linha Oder-Neisse como fronteira polaca(iii). Mas foi com este chanceler que começaram a surgir protestos pelas chamadas “interdições profissionais” aplicadas a funcionários públicos propostas, numa base ideológica pelos serviços de vigilância da constituição. O que, lembro-me ter sido divulgado na altura, numa definição de função pública muito lata, abrangeu sobretudo trabalhadores de caminhos de ferro.

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Falando agora do regime político da RDA, é de chamar a atenção para que durante muito tempo existiu um movimento concertado para a recusa do reconhecimento desta – conhecida pela “Zona” isto é, zona de ocupação soviética, que correspondia a 1/3 da Alemanha, não considerando já os territórios integrados na Polónia(iv), a seguir a ambas as guerras mundiais e que a II Guerra permitiu transitoriamente à Alemanha recuperar. Desconheço a proporção exacta de quantos alemães expulsos destes últimos territórios se refugiaram entre 1945 e 1949 nas futuras RFA e RDA e qual a origem dos 3 milhões de alemães que de 1949 a 1961 terão migrado da RDA para a RFA, e qual a base de apoio, em termos de origem dos manifestantes, dos protestos que em 1953 e 1956 eclodiram na RDA.

Registei com um sorriso que Ângela Merkel nasceu em Hamburgo e que a família se fixou no Leste quando o pai, pastor luterano, foi colocado em Mecklemburgo – Pomerânia Ocidental.

Enquanto existiu a RDA procurou dotar-se de uma organização que minimizasse os conflitos políticos internos. Assim, suprimiu em 1952 a organização federal convertendo-se num estado unitário. Nas eleições que também realizara em 1949 nos então Länder a Saxónia – Anhalt tinha votado muito à direita(v) e isto pode ter pressagiado movimentos centrífugos indesejáveis. Foi promovida a constituição de um Bloco Nacional para concorrer às eleições periódicas, englobando um partido socialista unificado resultante da fusão entre o KPD e o SPD este-alemães, um partido democrata cristão (CDU) e um partido liberal (FDP) este-alemães, um partido nacional – democrata (NDPD), uma organização de juventude (Juventude Livre Alemã) e os sindicatos. O número de lugares de deputados de cada formação permanecia proporcional de eleição para eleição. Deve registar-se que no Encontro de Erfurt foi dada a palavra a todas as formações e editado um pequeno opúsculo com todas as intervenções. Também é de realçar que os serviços secretos da RDA – STASI mantinham uma estreita vigilância sobre todos os actores, sendo possível dizer que se substituía a política pela polícia.

Dois aspectos merecem especial referência.

A fusão do KPD e do SPD foi decidida por referendo em ambos os partidos, sendo que no SPD a maioria não foi muito expressiva. O SPD oeste-alemão sempre denunciou a situação, mas, quando da queda do regime este-alemão quis incentivar a reconstituição de um partido social – democrata teve dificuldades: a primeira formação que se organizou era liderada por um agente da STASI…

O Partido Nacional – Democrata (NDPD), criado em 1948 com envolvimento de alguns militares que tinham aceitado, após a sua rendição, integrar-se numa estrutura unitária da oposição – o Nationalkomitee Freies Deutschlandcriada na URSS veio a ser considerado o lugar de organização de “nazis desnazificados” e dissolveu-se por altura da reunificação, tendo os seus membros aderido ao FDP.

Hans Modrow que como burgomestre de Dresda viria a ser em 1989 um apoiante das manifestações contra o regime e veio a ser primeiro-ministro de transição e, com o advogado Gregor Gysi um dos dinamizadores do Partido do Socialismo Democrático (PDS) que sucedeu ao SED, integrado muito jovem nas Forças Armadas e prisioneiro de guerra tinha aderido directamente ao SED.

Continuando a ser dirigente honorário do PDS e do Die Linke que sucedeu a este após fusão com um movimento dinamizado no ocidente pelo antigo ministro-presidente do Sarre, Oskar Lafontaine, que tinha chegado a ser presidente do SPD, Hans Modrow, falecido em 2023, esteve algum tempo sob vigilância das estruturas de defesa da constituição da RFA, agora com jurisdição sobre toda a Alemanha.

Na sequência de eleições na RDA o primeiro–ministro passou a ser Lothar de Maizière, da CDU este-alemã. Ângela Merkel surgiu na altura como membro da CDU e próxima do novo primeiro ministro(vi). O novo parlamento restabeleceu os Länder. Numa solução elegante, a reunificação surgiu como uma reunião entre os dois conjuntos de Länder, com o beneplácito dos quatro vencedores da II Guerra Mundial.

Lothar de Maizière seria integrado como ministro no governo do chanceler Helmut Kohl. Pouco tempo depois teve de se demitir quando se soube que tinha sido informador da STASI no seu partido.

Por © Raimond Spekking / CC BY-SA 4.0 (via Wikimedia Commons), CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=128547094

O percurso de Sahra Wagenknech, agora com 55 anos, percebe-se melhor, creio, esclarecido este contexto. Foi membro da Juventude Livre Alemã, integrou-se logo a seguir no SED e continuou a militar aquando da transformação deste em Partido do Socialismo Democrático e da fusão com o WASG, cisão de esquerda do SPD, em 2007, que deu origem ao Die Linke. Este chegou a alcançar 12 % de votos nas eleições do Bundestag em 2009 e esteve representado em numerosos parlamentos estaduais, tendo até às recentes eleições na Turíngia liderado o respectivo governo estadual. Tem sido objecto de vigilância constitucional ou têm-no sido tendências ou personalidades suas, incluindo durante algum tempo a própria Sahra_Wagenknech. A CDU e o SPD têm-se recusado a integrá-lo nos próprios governos nacionais, preferindo a formação de grandes coligações ou a negociação de coligações inéditas, como a actual SPD-Verdes-Partido Liberal.

De Sahra Wagenknech são conhecidas as inclinações académicas – da literatura (inicialmente) à economia, em se doutorou – e uma aproximação pessoal a Oskar Lafontaine(vii) que deu lugar ao divórcio dos respectivos cônjuges. No plano político considerou necessário responder ao declínio do Die Linke com a defesa de um novo programa.

A opção por criar um novo partido com este novo programa – compatível com a Lei Básica teve o cuidado de especificar – está aparentemente a revolucionar o quadro político da Alemanha

  • o Die Linke perdeu os direitos inerentes ao seu grupo parlamentar no Bundestag, uma vez que perdeu muitos dos seus membros para o BSW;
  • deixou de ter a sua importância no Parlamento Europeu – elegeu 3 eurodeputados contra os 6 do BSW;
  • perdeu a presidência do governo da Turíngia, em cujo parlamento deixou de ser o mais votado o que talvez tivesse conseguido, contra a Afd, não fora a criação da BFW;
  • apenas manteve a representação no Parlamento da Saxónia por ter eleito deputados nos respectivos distritos, o que lhe permitiu usufruir da representação proporcional sem exigência do limite mínimo de conversão de votos em mandatos;
  • embora as percentagens do BSW nas sondagens nem sempre tendam a confirmar-se poderá ter uma representação elevada nas próximas eleições estaduais no Brandemburgo em detrimento do Die Linke;
  • o BSW está a tentar criar estruturas em todos os Estados Federados com vista às eleições para o Bundestag que terão lugar em 2025.

Resta fazer uma referência ao Grupo de Esquerda no Parlamento Europeu, inicialmente configurado como um grupo de comunistas e aliados, e que neste momento só terá dos partidos comunistas originários o AKEL – Partido Progressista do Povo Trabalhador, de Chipre, e o PCP – Partido Comunista Português, cada um com um eurodeputado cada, uma vez que alguns dos partidos se reconverteram como partidos socialistas e outros perderam importância.

Distribuição de assentos entre os grupos políticos no início da legislatura de 2024-2029 do Parlamento Europeu

O Die Linke, que era o partido com maior representação no grupo antes do desastre de 2024 e já não mantinha relações com os partidos comunistas europeus, terá estado na origem de um incidente que levou o KKE – Partido Comunista da Grécia a desvincular-se do grupo. Todavia o KKE obteve em termos absolutos e relativos um bom resultado nas eleições para o Parlamento Europeu – 2 eurodeputados em 21 lugares, continuando os 2 eleitos como não-inscritos. O Partido Comunista da Boémia e da Morávia que perdeu a sua representação no parlamento nacional da Chéquia manteve nas eleições europeias o seu eurodeputado (haviam chegado a ser 4), que contudo não ficou inscrito no grupo. Nos não-inscritos figura também o SMER do primeiro-ministro eslovaco Roberto Fico, expulso do Grupo Socialista por ter integrado na coligação governamental um partido de extrema-direita. Quem é neste momento o maior partido do Grupo de Esquerda? Julgo que o 5 Estrelas italiano, que começou por não ser de direita nem de esquerda. As voltas que a esquerda dá…

Registaram-se especulações sobre o reforço que adviria para o Grupo de Esquerda do êxito que as sondagens anunciavam para o BSW. O facto é que os seis eurodeputados eleitos ficaram também nos não-inscritos.

 

Notas

(i) O que durante muito tempo foi facilitado pela obrigatoriedade de criação de um número de lugares tão grande quanto fosse necessário. Recentemente o Tribunal Constitucional aceitou que a partir das eleições de 2025 o número total de lugares no Bundestag.

(ii) Em 1967 foi constituído uma nova organização, o Partido Comunista Alemão (DKP) que ainda hoje existe, embora com reduzido peso eleitoral e que pelo menos inicialmente se terá dotado de uma direcção de reserva, clandestina, que pudesse manter a actividade partidária em caso de ilegalização.

(iii) Com a inclusão de Stettin na Polónia – acordada entre os vencedores da guerra – apesar de, comentava Raymond Cartier no seu livro sobre a II Guerra Mundial ser tão polaca como Bornéu; note-se que quando um governo polaco veio recentemente pedir indemnizações à Alemanha pela II Guerra Mundial o governo alemão teve a possibilidade de lhe responder que tudo tinha ficado regulado por tratado.

(iv) Basicamente, Posnânia e Prússia Ocidental, após a I Guerra Mundial; estes territórios mais Prússia Oriental, Pomerânia Oriental e Silésia, após a II Guerra Mundial.

(v) O que também sucede na actualidade.

(vi) Ângela Merkel terá sido membro da Juventude Livre Alemã.

(vii) Conhecido pelo Napoleão do Sarre, do qual foi ministro-presidente, e onde o Die Linke veio a perder apoio eleitoral.

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