XXV. Convida-me Minha memória.
Minha memória,
Convida-me minha memória. É preciso que me convides a permanecer, a usufruir, a participar. Só quem é convidado pode realmente viver. Aos outros, resta-lhes uma janela parda para os acontecimentos.
Há festa, haverá sempre festa mesmo que digam que não. E abundância, muita abundância, cada vez mais abundância nem sei eu de quê. Uma festa imensa e uma abundância ampliada para todos aqueles que são convidados. A esses é-lhes servida a vida toda, uma vida em directo e a cores.
Convida-me tu, minha memória. Ainda ontem foi dia de celebrar e eu não estive lá. Um portão maior do que a minha existência, barrou-me a passagem. A mim e a quase todos. Ficámos do lado de cá, parados, expectantes, nós a imensidão de gente. Do lado de lá a celebração decorreu apenas para os convidados.
Amanhã vai ser igual minha memória. O sol vai nascer devagar e permanecer de uma forma que não reconheço. O mar será eterno no seu leito de azul e as flores despontarão. Mas daqui, daqui não se verá absolutamente nada.
É preciso urgentemente que me convides. Só assim minha memória poderei recordar porque sabes, sem recordações os dias não existem, as horas passam caladas, o meu suspiro acende o silêncio e eu desvaneço.
Espero por ti, deste lado da existência e à porta. Espero eu me convides a mim e a todos. Somos uma imensidão à procura de recordações que nos façam continuar.
Os convidados por vezes esquecem-se desse facto: para não desistir, para continuar é imperioso que nos lembremos.
Deste lado não há cores, nem água, nem flores, nem sequer existência. Estamos de pé, ainda e, assim vamos permanecer até que me convides, até que nos convides.
O som roufenho da televisão gasta traz-nos imagens desbotadas. Tiraram-lhes propositadamente a cor. São imagens das celebrações e das festas. Elas existem. Nós sabemos que sim mas também sabemos que cada vez mais é absolutamente necessário que sejamos convidados.
Não sei se quero que me convides assim, sozinho. Não saberia festejar nem celebrar sozinho. Preciso de gente verdadeira. De gente que nunca é convidada como eu.
Vou esperar. O portão que me barra a passagem agiganta-se todos os dias e cresce, cresce, como se para sonhar e ver o horizonte também fosse indispensável ser-se convidado. E se calhar, é mesmo preciso e mesmo indispensável e, sou eu que ainda não percebi.
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