XXVIII. Chegou de repente.
Minha memória,
Chegou de repente, o bicho e invadiu tudo.
Um bicho redondo, sem arestas definidas nem olhos para ver. Sem orelhas para ouvir nem pernas para correr, Sem asas, sem braços, sem quase existência.
Um bicho redondo, que se insurgiu e se acomodou sem pedir licença.
Sabe-se pouco do bicho, nem dos seus hábitos, muito menos a forma de o combater.
O bicho chegou e invadiu tudo o que havia
Diz-se que se cola aos sapatos, emaranha pelos cabelos, transpõe a fronteira das pálpebras, da boca, do trato respiratório de cada um, do trato existencial de todos. Das paredes da alma, até. E, vive em todo o lado na sua omnipresença de quase não existência, esse bicho.
Chegou de repente, o bicho, e invadiu tudo o que havia e todos
Há quem jure que sobrevive a qualquer clima. Afinal, nesse lugar de quase não existência, “qualquer” significa quase nada. É um bicho preparado para o calor, o frio e a intempérie. Um bicho que não teme ser arrastado pela chuva grossa que escorre lá fora de encontro à vidraça. Um bicho que trata a neve e o vento com o à vontade de quem os conhece por inteiro.
E o bicho chegou de repente e invadiu mesmo tudo
Diz-se que o bicho, microscópico que ninguém vê, tem poderes. São poderes enormes, quase absolutos.
Trata-se afinal, de um rei minúsculo, esse bicho que atravessou os mares, os continentes. Um rei solitário e viajante que ontem era só uma ameaça e hoje, se torna numa realidade cada vez mais constante, cada vez mais presente.
Um bicho que chegou e invadiu tudo com a vontade firme de permanecer
Todos os dias, o espaço do bicho cresce mais e mais. Outros bairros, outras gentes, outros pontos do mundo. O bicho persiste dentro e fora. Avança destemido pelo ar e à boleia de quem corre, de quem fala, de quem existe, de quem se mexe, de quem transpira, de quem trabalha e de quem é gente.
Não fosse dar-se o caso de haver gente e, porventura, nem haveria bicho. É da humanidade e do afecto, da proximidade e da convivência que o bicho se alimenta.Uma companhia tóxica, inoportuna e insidiosa que a pouco e pouco nos confina o espaço e nos alarga o tempo.
O bicho, é afinal a própria transcendência minha memória. A nossa própria transcendência na sua plenitude maldosa e alimentando-se da característica mais plena que lhe garante longa vida: a nossa completa ignorância.
Cada vez que não sabemos nada desse bicho ele ganha mais um espaço.
Desta vez, diz-se que entrou pelas janelas, pelas frinchas, pela conversa amena que tivemos sem pensar. Ou então, diz-se que se senta à mesa e se cola às nossas mãos…
Não podemos é deixar de pensar. Não pensar é abrir a porta ao bicho que se alimenta dos nossos descuidos e do nosso desespero. Disso, já temos já praticamente a certeza.
Ontem deixei de me desinfectar e o bicho ganhou espaço…
Ontem dei-te um abraço e o bicho galgou um infinito…
Ontem, chorei as lágrimas da tua ausência e o bicho aproveitou a torrente que me escorria da cara para nadar em contra ciclo, através dos cantos abertos e agora vazios, dos meus olhos.
Não pensei… No entanto, se pensasse sempre talvez também não fosse espontâneo. A espontaneidade é pois um perigo para este bicho.
Não sabendo nós, nunca onde ele está, é como se estivesse em toda a parte.
O espaço, ocupa-o ele sobretudo de cada vez que temos medo, de cada vez que nos encolhemos e não saímos, não fazemos, não permitimos, não agimos na nossa plenitude de humanidade.
O tempo, é agora longo e vazio. O espaço imenso que o bicho ocupa, confinou-nos a um absurdo onde nada mais existe porque nada mais é importante.
De todas as nossas rotinas, agora suspensas, ficaram apenas aquelas que não nos definem e não nos diferenciam. Somos seres vivos, alimentamo-nos, dormimos e somos apenas isso diz-nos o bicho todos os dias do alto da sua omnipresença encapotada.
Numa pandemia, aprendemos por isso a ter saudade daquilo que já fomos e não sabemos se alguma vez voltaremos a ser. O tempo curto dos nossos afazeres que foi substituído por este acumular de angustia, desapareceu. E, o espaço, o nosso ínfimo espaço agora ficou reduzido na nossa mera existência porque o bicho, levou com ele a nossa essência. Tem-na lá escondida por detrás de toda a nossa ignorância e sobretudo do nosso medo.
Um dia, o sol pode até queimar este bicho ou, alguém desistir da sua existência ou, alguém provar que é possível combate-lo. Até lá, temos esta invisibilidade omnipresente e sufocante, cada vez maior que mal conhecemos e não antecipamos.
Por agora, ficamos nesta espécie de dormência sem saber se algum dia nos cruzaremos a sério com este bicho e com as suas consequências. Estamos à espera e vigilantes. Somos mortais, isso, aprendemos logo no dia em que o bicho chegou.
E o bicho chegou e invadiu tudo! Invadiu-te também a ti, minha memória.
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