(…) Num plano paralelo, também a selecção de participantes ou especialistas em programas mediáticos parece ter contribuído para essa ilusão de realidade incontornável, como se toda a população fosse função meramente passiva dos seus juízos e convidada a subscrever, senão explicitamente pelo menos de forma implícita, a impossibilidade de qualquer outro resultado que não a entronização de Hillary.
Da aceitação dos resultados de uma eleição como manifestação de imaturidade democrática
Perante todas estas condicionantes, não deixa ainda assim de surpreender a conduta de absoluta – e até algo infantil – recusa de parte da população em aceitar um resultado eleitoral que, de acordo com o processo democrático como se encontra definido neste momento e já desde há algum tempo no país, nada tem que possa ser-lhe apontado criticamente. Detalhemos um pouco mais este ponto.
Em primeiro lugar, o argumento de que o voto popular – ou seja, aquele efectivamente atribuído a cada uma das candidaturas – não corresponde ao resultado final da eleição tem sido apontado diversas vezes como uma bizarria. Se é certo que, em tese, pode ser considerado nessa qualidade bizarra, não é menos verdade que é esse o procedimento há muito tempo, pelo que qualquer insatisfação com o modelo teve já, durante todo esse tempo, diversa oportunidade para se tornar consequente e produzir a mudança considerada necessária.
Tomemos em consideração também que foram diversas as candidaturas bem sucedidas, de um partido e de outro, que tiveram condições favoráveis, em termos da sua concretização, para produzir essa mudança. E no entanto, tal mudança nunca ocorreu. Daí decorre uma de duas conclusões, quando não ambas: o eleitorado tem escolhido cronicamente candidaturas não declaramente comprometidas com essa alteração; o eleitorado nunca se sentiu verdadeiramente atingido, na representação que procurou, pelo facto de tal mudança nunca ter sido produzida. Em última análise, a responsabilidade última pela eternização do modelo caberá sempre ao eleitorado.
Em segundo lugar, grande parte da reacção agora visível ao resultado não decorre de uma discordância de fundo com o sistema eleitoral vigente, mas com os valores da candidatura eleita. Neste particular, a democracia enquanto processo – com excepções que não parecem estar em causa nesta circunstância particular – é, e deve manter-se, razoavelmente cega aos valores envolvidos, antes primando pelo respeito das fases do processo. O contrário seria inaceitável, na medida em que se contaminaria um processo de escolha livre com pré-condições que seriam, fundamentalmente, anti-democráticas.
Significa então que boa parte desta reacção respeita o sistema apenas enquanto ele permitir a eleição de uma candidatura que não considere inaceitável; e isto constitui uma extraordinária manifestação de imaturidade democrática, típica de quem só aceita um resultado se lhe for favorável – algo de que, curiosamente, sempre fora acusada a candidatura agora vencedora mas que não parece ser reconhecível a quem, apoiando a candidatura vencida, recusa a legítima eleitoral da primeira.
Do insulto pessoal como manifestação de fibra democrática
Se o ponto anterior já permite levantar a questão da preparação, não da candidatura de Hillary mas de parte de quem a apoiou, além de um aparente défice de consciência e posicionamento democráticos, mais grave ainda se torna que aquelas e aqueles que recusam os valores da candidatura eleita considerem legítimo da sua parte praticá-los, ou seja, a desconsideração, a discriminação e o insulto de toda/o aquela/e que tenha apoiado a candidatura de Trump, afirmando de forma mais ou menos explícita que o seu voto não pode valer o mesmo por ter sido dado a quem o foi.
A este nível, diga-se, não produzem um discurso muito diferente daquele de que acusam Trump, e de que também Hillary foi a seu tempo partidária: apesar de muitos media terem feito o possível para que a declaração abandonasse rapidamente a agenda, não é difícil ter presente que a candidata considerou deploráveis não apenas os mas também (e significamente) as apoiantes de Trump, o que não deixa de ser extraordinário para quem sempre quis ser vista como a destinatária do voto feminino por uma espécie de inerência biológica.
Do simplismo das explicações elitistas
Da mesma forma que pode colocar-se a hipótese de um contributo mediático no sentido da alimentação da ilusão de que todo o país subscreve o mundo como visto pelos media e pelas/os seus/suas profissionais, também uma parte da análise das motivações desta transformação política tenta encontrar escapatórias analíticas de aparente preguiça cognitiva, como o sejam o estatuto social ou profissional, para além da dimensão puramente racial do voto. Tais explicações parecem constituir até parte do problema mais depressa que da solução, na medida em que procuram – e, estatisticamente, como sabemos, é possível que consigam, ao fim de algum trabalho, encontrar… – o que chamaríamos de responsáveis, no sentido da imputação de culpa.
Se a questão de género não parece, como avancei já, sobreviver a escrutínio efectivo, também a ideia de que ‘se vota com a carteira’ não corresponde necessariamente à verdade, seja por existirem boas razões para que qualquer estatuto socio-económico se revisse em qualquer um dos candidatos – o que faria dos partidários da propriedade financeira privada tão depressa votantes na disponibilidade de Hillary para a responsabilização das famílias pela crise financeira como votantes em Trump pela sua condição de empreendedor –, seja também por não ser possível atribuir a apenas uma variável uma conduta eleitoral muito mais complexa, e que atende tanto à influência exercida em termos de contexto social por pares como a projectos de vida particulares, ao sucesso ou insucesso do condicionamento mediático, ou até a votos baseados exclusivamente na projecção da/o votante na personalidade da/o candidata/o.
Por outro lado, partindo do princípio que apenas uma das candidaturas se manifestava publicamente a favor do respeito dos direitos das/os afro-americanas/os – ao ponto absolutamente patético de Hillary, algures entre a piada e a afirmação séria, ter tentado passar a ideia de que partilhava os seus costumes culturais e gastronómicos (a rábula radiofónica do hot sauce constantemente na mala, só comparável à candidatura africanista de Passos Coelho…) – é bem provável que a linha de divisão em termos de voto não tenha seguido essa lógica que tantas e tantos especialistas deram como garantida, sem prejuízo de as condições de exercício desse voto não serem, garantidamente, as mesmas para as/os eleitores brancas/os. E tal reconhecimento dificilmente pode, mais uma vez, ser atribuído a uma suposta América de Trump, o qual nunca participou em qualquer acto legislativo federal ou estadual que o permitisse, ao contrário de… Hillary.
Epílogo: Da reescrita da História
Demasiadas e demasiados de nós se têm deixado envolver em discursos e afirmações que procuram, como infelizmente acontece com muita frequência, redefinir a História em termos cronológicos. Os mais observados exemplos disto têm sido a afirmação de que existe uma América de Trump, a surgir agora, sem passado e apenas com presente, e a ideia de que a Europa deve preparar-se para conhecer processos de transformação instantânea num futuro próximo. Abordemos em separado estas duas realidades.
Em primeiro lugar, dificilmente fará sentido considerar que Trump criou, com esta eleição, uma conduta cívica nova, baseada em condutas violentas de sexismo ou racismo. A este nível convém, em nome da honestidade intelectual, reconhecer que nenhuma dessas condutas é nova, e que muitas delas até se agravaram – ou tornaram apenas mais visíveis, de acordo com os critérios de noticiabilidade sanguínea dos media – durante os mandatos de Obama: e não consta que se afirme com frequência que existe uma América de Obama com essas características, apenas por serem visíveis essas condutas durante esses dois mandatos. O que existe, como é absolutamente evidente, é um continuum de comportamentos com razões históricas, económicas, políticas e sociais muito mais profundas, que obecederão muito mais ao seu movimento próprio que a qualquer alteração circunstancial, mesmo que eleitoral, ocorrida entretanto. Como tal, não parece tal afirmação sobreviver a grande escrutínio.
Por outro lado, a afirmação mais atenuada de que a eleição pode estar a validar essas condutas, em virtude de se atribuírem à candidatura de Trump valores semelhantes, pode com grande probabilidade desvalorizar a relação causal inversa: Trump poderá ter aproveitado, de forma mais ou menos consciente, um diagnóstico de reconhecimento de que essas tensões se encontravam já em ebulição, adaptando o seu discurso para capitalizar eleitoralmente a partir dele, exactamente da mesma forma que outras e outros políticos capitalizaram outras tendências já em curso aquando da formulação dos seus discursos. Esta possibilidade permitiria, por outro lado, prever alguma matização do seu discurso pós-eleitoral, em igual sentido pragmático, atingido que já está o objectivo eleitoral.
Em segundo lugar, e no que toca a Europa, convém ter presente não apenas o contexto deste ano no que diz respeito ao Brexit e a tudo o que foi previsto e não constatado a seu respeito, mas uma tendência muito mais longa visível desde os anos 90 em torno de lideranças políticas populistas e pragmáticas, das quais os expoentes maiores terão sido Berlusconi e Haider. Nesse sentido, quando muito, teriam sido os Estados Unidos a ser contaminados por uma deriva populista europeia, e não o contrário. Quem, de forma pouca avisada, tenta também neste caso reinventar a História em torno de um suposto momento zero deve, por essa razão, procurar reconhecer as causas mais profundas de transformação das condições de vida das populações, variável frequentemente na base das suas preferências eleitorais (quer no sentido da escolha efectiva, quer no sentido da abstenção), em vez de se entreter com exercícios de adivinhação estatisticamente ‘fundamentados’, apoiados em métodos arcaicos e ingenuamente positivistas de auscultação instantânea de opiniões, e oferecidos em versão pronto-a-comer em horário nobre. Na prática, continuamos hoje tão ignorantes sobre a população que constitui o(s) nosso(s) país(es) como surpreendidos pelo resultado que esse desconhecimento produz em actos eleitorais. E seria de esperar de especialistas mais do que ismos, explicações dadas à pressa em cima do acontecimento, ou manifestações de espanto, sob pena de serem absolutamente inúteis, apesar da altíssima consideração em que são tidas e têm a si próprias/os.
NB: Leia a primeira parte deste artigo publicada a 14 de Novembro