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João de Sousa

Sábado, Dezembro 20, 2025

Feitiçaria

Onélio Santiago, em Luanda
Onélio Santiago, em Luanda
Bacharel em Ensino da Língua Portuguesa pelo Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda, é jornalista do semanário angolano Nova Gazeta.

Desde aquela data, talvez por causa dos acontecimentos que se sucederam, quando me perguntam se o feitiço existe, respondo com um rebuscamento que causaria inveja aos políticos: talvez sim, talvez não.

Vivíamos num dos bairros mais conhecidos de Luanda. No quintal onde arrendávamos, além do nosso cubico, havia a casa do senhorio e a dum papoite fabricante e vendedor de micates que respondia pelo nome de Tex.

Como devem calcular, Tex era apenas um diminutivo. Um diminutivo que tanto podia ser de Teodoro como de Teófilo; de Terêncio como de Mateus. Por isso, qualquer semelhança com algum Tex que vocês conheçam não passará de mais uma coincidência.

Pois, como ia dizendo, o Tex era um kota bué sebem. Raramente se lembrava de cobrar os kilápis. Sempre que houvesse campanhas para ajudar deslocados de guerra, o Tex não dormia enquanto não tivesse uma banheira cheia de micates para doar. Como um gajo já andava na pré-cabunga, os meus pais me compravam um saquito de micates todos os dias. E o Tex, ignorando os perigos da falência, nunca se esquecia de dar esquebra.

Um dia, porém, o filho mais novo do senhorio adoeceu depois de comer micates. Em poucas horas, o rapaz passou da dor de cabeça para os vómitos. Aos vómitos, que já eram acompanhados de sangue, seguiu-se uma diarreia aguda, daquelas que saem sem dar cheiro.

No hospital, onde o rapaz viria a falecer, enquanto se aguardava pelo resultado das análises, o médico desconfiava que se tratasse de cólera. Na igreja, no entanto, o pastor não tinha dúvidas: era feitiço, ou melhor, era feitiçaria do Tex, o micateiro.

Pela velocidade com que Tex babulou do bairro, descalço e descamisado, com pedras e paneladas a lhe roçarem o nguimbo, Usain Bolt teria de nascer mil vezes para derrotar o homem dos micates numa corrida.

Nunca mais se falou do Tex. Como anda agora o kota? Continua a fabricar os mesmos micates do tempo da guerra ou anda de babulo em babulo por causa dos pastores-adivinhadores? Também não sei!

Aliás, como diria Dostoiévski, isso é já o princípio de uma nova história, da transformação de um homem, da confrontação com uma nova realidade, de todo desconhecida. Tema talvez para um novo ‘Cronicontando’, porque este sobre a feitiçaria termina aqui.

O autor escreve em PT Angola

Nota do Director

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