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João de Sousa

Sábado, Abril 20, 2024

Sei que estás em festa, pá

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

Não foi uma saída da prisão, mas uma reentrada no mundo. No mundo, literalmente: televisões em direto e primeiras páginas dos jornais. Um simbolismo extraordinário. Regressado da provação, Lula da Silva entra em palco com firmeza e de coração limpo. O que mais impressiona é a energia – vem para lutar, não para se reformar. Vem sem ressentimento, mas sabe também o que não pode voltar a acontecer.

A grandeza daquele momento fez-se de muitas iniquidades. Vem da história do golpe, da Presidenta destituída sem crime de responsabilidade, como se o regime fosse parlamentar e não presidencial. Vem da história da lava jato, operação judiciária que se revelou ser o instrumento e a oportunidade para criminalizar todo um partido e perseguir o seu líder histórico. Vem da história da singular condenação de corrupção por “factos indeterminados “ e da prisão em violação da Constituição. Vem da história da cassação dos direitos políticos, rasgando com petulância o direito internacional e a determinação do comité de direitos humanos das Nações Unidas para que o antigo presidente fosse candidato.

A emoção do instante é também o resultado da memória de violência e de humilhação destes últimos anos e em particular da disputa eleitoral. De um lado toda a direita unida, a moderada e a extremista, a que se juntou a agressividade da imprensa e a vergonhosa parcialidade do aparelho judiciário. Por detrás deles surgiu ainda a sombra do partido militar que, passo a passo, em “aproximações sucessivas”, ganhou rosto e visibilidade na vida pública. Do outro lado, rodeados de uma linguagem ameaçadora e belicista e com o antigo presidente preso, os dirigentes e militantes do partido lutaram e lutaram e lutaram para defender o seu  património de governação e a ímpar transformação social conseguida na economia, na distribuição de riqueza, nas oportunidades educativas, na redução das desigualdades, na inclusão social, na afirmação do Brasil como uma nova e jovem voz na cena da política internacional. Agora que o seu líder histórico dá um pequeno passo para a liberdade, tudo muda e o País parece outro. Fico contente.

Para trás fica a decisão jurídica, rapidamente engolida pela dimensão política do acontecimento. No fundo, o Supremo Tribunal demorou uns dias a provar que sabe ler: “ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já não havia ângulo para olhar os inacreditáveis exercícios de pantomina hermenêutica constitucional, querendo convencer-nos de que o que está escrito não é, afinal, o que está escrito.

Por aqui, já que me perguntam, o tom dominante foi de regozijo. Muitos portugueses já  conhecem a fraude judicial e a miserável conduta de um juiz que, para chegar a ministro, instrumentalizou a sua função, colocando-a ao serviço de uma caçada política. Na política institucional, o costume: o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda saudaram a libertação, a direita institucional calou-se e o Partido Socialista mostrou indiferença: grávido de Estado, já nada o impressiona nesta história de direitos constitucionais. Pelo caminho ainda vi na televisão um deputado europeu vomitando ódio contra Lula dizendo que este é, sem dúvida, corrupto – só que não têm provas. Parece que é jurista. Como veem, não são só os brasileiros que tem que lidar com pulhas.

Enfim, regressemos a Lula da Silva. Dez anos anos depois de deixar a Presidência volta a ter que prestar provas perante uma direita que quer arrancar pela força o seu retrato da galeria dos presidentes. Na verdade, não lhe deixam alternativa. Não suportam a excepcionalidade de uma governação que foi além do esperado e do repetido. Todavia, agora, depois da encarniçada batalha de três anos, começa a emergir uma nova história. O que parecia vencido reaparece fixando a audiência com olhar digno – estou de pé. Todos os outros parecem desaparecidos, em particular os que começaram a batalha. Conseguiram o que queriam, é certo, mas a custo da democracia e da sua própria existência política – nem Temer, nem Fernando Henrique Cardoso, nem Serra, nem Alckmin, nem PSDB. O PT perdeu as eleições, está fora do poder e, contudo, este é um dos raros momentos em que só temos olhos para o vencido e para a admirável beleza da batalha tão desigual que travou.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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