O poeta nunca teve lugar na cultura moderna, embora pertença a uma civilização inventada por ele próprio. Então, a primeira pergunta: o que é a vida?
Uma pergunta que provoca uma pirâmide de perguntas: o que é o amor, o que é a poesia, o que é a origem, o que é a língua e a linguagem? Enfim, o que é o corpo? E o ser, o que é? O ser medieval, o que é? E, afinal, a que serve a poesia? Sendo a origem da vida, a poesia se presta mesmo a uma atitude política, e não apenas a uma atitude política, mas a uma condição do ser. E a sua letra, a sua agrafia de origem? Enquanto qualquer pergunta pode ser feita, também qualquer resposta pode ser dada. Mas, naturalmente, existe uma diferença entre perguntar e responder. Inclusive, respostas que podem nascer assentadas por pensamentos que se sustentam, mas a minha pergunta é radicalmente simples e complexa: como entender e suportar a poesia quando a sociedade vive a queda de sua gênese? Quem leu, por exemplo, os cavalos do verbo? A natureza é a violência mais sublime, assim como o amor e também a poesia. O ser humano, acometido pela falta de humanidade, passa pela terra como um fetiche de humano, um arremedo, uma máscara, um personagem de um imaginário em ruptura. Assim, como suportar a imagem no espelho, se a imagem que reflete no espelho é também a imagem ancestral de todos os povos e ainda a imagem de um pai e de uma mãe, um sangue vermelho que tem as cores primárias da existência? E como entender a lira, e não o corpo, como instrumento de sua miséria? Como ser primário, como pensar a poesia que se faz em nome de uma África, eternamente condenada a incompreensão? Mestiço de corpo inteiro pode ser visto com um trabalho de arqueologia da criação humana, quando, naturalmente, o ser humano, como qualquer outro ser, nasce em estado de instinto, instinto que pode ser lido como fusão entre ser e fazer. Ser o quê? Fazer o quê? Ser a vida, fazer a vida, misturar-se ao ser como ser, misturar-se ao ser assim como se misturam os verbos “ser” e “fazer”. O poeta Delmar Maia Gonçalves, através da poesia, levanta a bandeira de um povo que é visto como apenas uma espécie animal, vegetal, mineral, um povo que é povo e quer integrar as vozes que ecoam na humanidade. Mestiço de corpo inteiro: um livro para voltar ao estado de mãe. Mas a mãe – a nação – se tornou uma fábrica de fantoches, o filho fabrica não a mãe, mas a imagem que ele, expulso da água, fabrica para suportar a sua solidão.
Um preâmbulo assim serve para esclarecer que a literatura e seu mundo cercado de teorias não são suficientes para problematizar o universo das letras e das artes e, muito menos, o complexo universo da poesia, tendo em vista que a poesia é, antes de se tornar linguagem, uma viagem ao interior do ser e do cosmos. E o que é, então, o eu poético, se o eu poético é comum ao ser vivo humano? O eu humano. O eu humano e o eu poético, universalmente os mesmos, se multiplicam na unidade da diferença, sendo, simultaneamente, iguais e diferentes em tudo. Portanto, a poesia de Delmar Maia Gonçalves – por favor, não nos esqueçamos de sua cor mestiça – vai carrear para o campo das palavras a sua experiência constitutiva através do fazer poesia. Um fazer que existe porque antes existe o ser em suas idades ancestrais. Não nos esqueçamos também da interpretação da palavra “primitiva”: a vida em todos os sentidos é primitiva sendo presente e futuro através dos antepassados. Ninguém, mesmo o mais Ecce Homo dos seres, poderia convencer alguém apenas com o excesso de uma metamorfose da arte, não de amar, mas de existir, naturalmente. Sim, existir como uma árvore, naturalmente. O poeta Delmar Maia Gonçalves em África Lusíada inventa sim a poesia ao mergulhar profundamente nas águas amnióticas de sua terra. O que pode se entender como origem? A atopia de uma civilização e suas realidades em transe, porque, assim, um sermão é um sermão e uma ascensão é uma ascensão. E quem atravessa a noite escura de um Lázaro condenado não ao martírio de sua lepra, mas à misericórdia de quem se banha em ouro? Lápide é lápide. Esquife, esquife. Mas quem escondeu o sabor da palavra alcaçuz?
O poeta Delmar Maia Gonçalves escreve em língua portuguesa, a mesma língua que ele sentia vibrar através da voz de sua mãe, uma língua ancestral que sempre habitou profundamente a África em estado animista. Mais uma pergunta: o que seria o eu profundo, um eu profundo na África, um eu profundamente archaico? Assim, ao escrever uma oração, o poeta pode puxar para o seu corpo um imaginário, imaginário que tanto pode revelar como esconder, o que se revela se esconde ao avesso e o que se esconde se revela ao avesso. Exemplo: ao grafar a palavra “oração”, o que se remete a esmo é a presença de um oráculo, isso apenas para começar a prosa. Enquanto ao escrever “homem primata”, substantivo e adjetivo, puxa a dimensão ancestral do conjunto, ou seja, impossível se afastar das sombras do homem, dos seres, das coisas. Agora, por exemplo, ao deixar as palavras “seres” e “coisas” o que mais quer nascer, voltar a existir é a catarse da palavra “identidade”. Quando se escreve o nome de um lugar, o país Moçambique, lugar de nascimento de Delmar Maia Gonçalves, nasce o sentido de construção de uma utopia, a utopia de um lugar que existe, um lugar que se rompe de dentro das palavras para renascer em sua natureza. A natureza de uma origem eivada de um desejo comum é a utópica compreensão das diferenças, entenda-se diferenças como um labirinto de etnias, etnias que resistem ao guardar na voz do mestiço de corpo inteiro as cores híbridas da humanidade. Então, se uma pergunta ecoa, ecoa uma resposta, por que uma cor provoca tanto o olhar? E o olhar tem alguma cor? O amor tem cor? Talvez o amor tenha cor sim, mas isso é terrível como plantar panaceia e não colher panaceia. Talvez, a indiferença tenha a cor da ignorância. E o que é a ignorância, senão aquilo que se perde no limiar da indiferença? Somos uma civilização em que a indiferença resiste líquida no cotidiano.
Não conheci a poesia de Delmar Maia Gonçalves no Encontro de Poetas de Coimbra, um poeta sem lugar na Ibéria que dividiu o mundo em dois polos, mas lá conversei durante víveres que sempre me falava de sua natureza original. Mas por que a África precisa tanto sair de lá para fazer o mundo olhar para lá? Por que o mundo apenas olha a África como quem olha uma imagem pregada na parede? A África está viva em todo o mundo e todos nós somos a fotossíntese de lá. O livro de poesia Mestiço de corpo inteiro pode ser lido para arrancar um pouco da mentira do homem, um pouco da mentira da mulher, um pouco da mentira do dinheiro que compra tudo e todos. Mestiço de corpo inteiro é um livro para aprender a ver a África, para aprender a ler a mestiçagem que Portugal produziu na África e na América. Mestiço de corpo inteiro é um livro de poesia para aprender a ler a poesia. E como se aprende a ler? Se aprende a ler quando a comunicação está destruída pelo excesso. Também se aprende a ler poesia quando se aprende a ouvir a voz interior e sua voz anterior.
O ativista Delmar Maia Gonçalves levanta a bandeira da poesia, publica livros, faz leituras de poesia, produz encontros de literatura, defende não apenas a causa da arte, mas também uma outra causa, igualmente perdida como a causa literária, a causa da inclusão da cultura africana na Europa, nomeadamente em Lisboa e Portugal. Conheço Portugal e também conheço, parcialmente, o continente africano, assim como conheço as Américas, especialmente a América Latina e o Brasil, o país onde nasci; sei que os povos são iguais na diferença. E a diferença, exceto na palavra escrita ou falada, não existe em ninguém. A democracia artificial, a liberdade artificial, a educação artificial se tornaram instrumentos de catequização, de dogmatização do mundo contemporâneo. E tanto os escritores, como qualquer outra espécie de ativista cultural se tornaram presas da política de desconstrução identitária disfarçada de uma política de inclusão.
Tenho viajado o Brasil e o mundo com as performances de Poesia Biossonora – experiência que leva ao limite a explosão da poesia em todos os sentidos, mas em busca de uma ligação natural e radical entre a vida e a poesia – e a poesia realmente está longe de voltar a ser uma poesia. Os poetas estão doentes, deixaram de aprender a usar a liberdade e vivem a síndrome da rendição às vanguardas. Mas as vanguardas envelheceram e estamos, afinal, no terceiro milênio. Infelizmente, sobrevive uma impotência em nome de uma confusão entre arte conceitual e autonomia de uma identidade artificial. A poesia, então, virou uma espécie de jogo entre literatura, performance, artes sonoras e artes visuais. Os poetas – ou aqueles que se nomeiam poetas – estão em completo desespero, em estado de ignorância frente às experiências de linguagem. E o pior: incapazes de sentir a existência e entender a condição humana e a função da arte de criar entre aquilo que se experimenta e o que, afinal, foi uma experiência humana antepassada. Portanto, a crise se multiplica através de poéticas destituídas de qualquer pulsão.
Talvez tenha restado aos poetas a difícil tarefa de empreender uma atividade sem lugar no mundo do dinheiro. Mas isso não seria novidade nenhuma, se considerarmos os passos do homem durante a história da civilização. Como ler um poema e evidenciar a verdade de um criador, se esse criador não consegue interpretar, mesmo intuitivamente, o filtro de seu tempo? Se, por um lado, a poesia é um extrato que nasce de uma experiência pessoal, por outro lado, é impossível viver a vida sem penetrar a existência coletiva e seu poço. Os poetas estão perdidos em busca de uma fama, estão contaminados pela vontade de apenas mostrar o retrato da beleza e se esquecem de que a beleza é estupendamente abstrata. E quanto mais terrivelmente abstrata, mais se aproxima da revelação humana, uma revelação que pode significar profícua para o homem contemporâneo. Por que os poetas de outrora deixaram de ser autores que representam a literatura de um tempo e espaço para se tornarem modelos recriados por discípulos de gesso? A literatura, no entanto, nunca conseguiu um índice de serialização industrial, embora seja defendida como uma porta de passagem para a consciência da humanidade. Os escritores e os poetas sempre foram vistos como pessoas corroídas de estranheza, além de não serem vistos como trabalhadores que necessitam do trabalho para de fato ganhar dinheiro e pagar as suas despesas. Por outro lado, os próprios escribas gostam de preservar essa imagem, uma imagem que não contribui em nada, pelo contrário, estraga qualquer ideia de integração ao meio social.
Mas a África está mesmo condenada à ignorância do mundo? Então, como reabitar a África e suportar a sua civilização como qualquer outro povo é incorporado ao universo, naturalmente? Quem fica questionando, por exemplo, se os franceses são bleus ou não, se os ingleses são blues ou não? O Brasil é um país geograficamente grande que tem como unidade a língua portuguesa tropicalizada, mas as diferenças entre as regiões são imensas, diferenças em todos os sentidos: diferenças culturais, diferenças sociais, diferenças e não apenas contrastes. E o que o Brasil, afinal, tem feito para diminuir essas diferenças é muito pouco, ou quase nada. E talvez não consiga mesmo fazer nada, a não ser iludir o povo com promessas de arroz e feijão. Mas arroz e feijão, embora necessários, não são suficientes para a construção de uma sociedade.
Então, Delmar Maia Gonçalves, como ler o seu livro Mestiço de corpo inteiro depois de saber que o homem tem uma natureza ruim? Porém, mesmo sendo de uma natureza assim, o próprio homem quer sublimar essa natureza ruim para se transmutar em um sujeito mais digno de si. Enfim, agora é possível vislumbrar a dignidade de Delmar Maia Gonçalves em busca de uma comoção a favor de Moçambique e da África, a favor de um povo como qualquer outro povo, um povo que apenas quer ser; povo, simplesmente povo. E, como todo povo, um povo que se mostra em suas tradições e contradições, em sua cultura, enfim.
O livro Mestiço de corpo inteiro é uma cartografia em defesa de uma sociedade de direitos e deveres comuns, em defesa de uma antropologia dos sentidos, iluminada pela preservação da ancestralidade como ritual de passagem entre a memória e a existência, em defesa de uma poética ao mesmo tempo e espaço, uma poética em estado de política. Mas uma política que se faz linguagem através da poesia, uma poesia que defende sim a cultura africana como a medula do mundo contemporâneo. Um poeta assim, que defende o seu povo, deve ser lido como um revolucionário que não suporta mais a mentira e as máscaras, como tanto defendeu Darcy Ribeiro os nativos brasileiros e a utopia selvagem. Delmar Maia Gonçalves é essa utopia, uma utopia que não se rende ao jogo do poder, a utopia em estado de verbo, por um instante, espelho da realidade jamais espelhável.
por Wilmar Silva, Poeta brasileiro