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Sábado, Abril 27, 2024

O incumprimento norte-americano não será para já

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O dia 1 de junho próximo poderá assistir a um evento único e ciclópico – o default ou incumprimento ditado pela impossibilidade de emissão de mais dívida pelos EUA – se até lá as duas câmaras (Senado e Câmara dos Representantes) norte-americanas não alcançarem um acordo que permita à administração voltar a ultrapassar o limite para o endividamento público, actualmente fixado em pouco mais de 31 biliões de dólares.

Este valor, que representa cerca de 147% do PIB norte-americano, já foi ultrapassado em meados de Janeiro último e o “shut down” (encerramento puro e simples dos serviços públicos federais e suspensão de pagamentos a credores, fornecedores, funcionários públicos e beneficiários de prestações sociais) só foi até agora evitado graças a malabarismos e contorcionismos contabilísticos. Mas a data limite aproxima-se… e os políticos (leia-se senadores e deputados, democratas e republicanos, das duas câmaras) mostram-se incapazes de ultrapassar as suas divergências e alcançarem um acordo para a subida daquele limite, apesar das tentativas do presidente Biden, a mais recente das quais inclui um plano para o congelamento dos gastos.

A prática da imposição de limites à dívida (o chamado debt ceiling, na terminologia anglo-saxónica) data dos tempos da I Guerra Mundial (1917) tendo surgido para resolver as dificuldades de ver todas as emissões de dívida autorizadas pelo Congresso (num processo burocrático e demorado), mas criou as condições para este panorama de complicadas negociações entre democratas e republicanos, especialmente em conjunturas políticas de forte bipolaridade e grande rivalidade com as duas formações a dividirem entre si a Casa Branca e a Câmara dos Representantes.

O número de vezes em que houve necessidade de rever o limite da dívida já rondará a centena; só na última década foram sete, com o último a ocorrer em 2021 e resolvido sem grande problema, ao contrário do sucedido em 2011 e 2013 (ambos sob administração Obama), com o primeiro a ser fechado a poucas horas da data limite e o segundo na véspera.

As crónicas dificuldades em torno da revisão dos limites ao défice podem ser entendidas como reflexo natural das limitações do sistema bipartidário norte-americano, agudizadas sempre que a rivalidade entre democratas e republicanos é extremada (como foi o caso em 2011 quando os sectores republicanos mais conservadores enfileiravam o movimento Tea Party e Donald Trump financiava a campanha para questionar a nacionalidade de Barack Obama ou, como sucede agora, quando os republicanos do movimento MAGA vislumbram a possibilidade de criar uma recessão económica que alimente as esperanças de ver Donald Trump regressar ao poder), crescem as perspectivas de gastos (com o envolvimento norte-americano na Ucrânia a traduzir-se num aumento ainda maior das despesas e do endividamento), opção que contraria abertamente a posição dos republicanos que procuram manter-se irredutíveis na necessidade de travar o endividamento mediante cortes drásticos na despesa.

Do lado democrata fazem-se ouvir argumentos, com a secretária de Estado, Janet Yellen, a avisar que o limite da dívida pode trazer “catástrofe económica” e a própria Casa Branca a publicar um estudo sobre os potenciais impactos económicos se o país entrar em incumprimento, dos quais se destacam uma queda no PIB (variando entre 0,6% no terceiro trimestre se o incumprimento for curto e 6,1% se for prolongado), a subida do desemprego (que poderá atingir mais de 8 milhões de desempregados e atirar a taxa de desemprego para os 5%), o aumento dos custos com os juros (as taxas deverão subir em consonância com o aumento do risco do país) e a redução das prestações sociais e dos parcos cuidados de saúde (Medicaid) ainda disponíveis.

Mas o pior será mesmo a quebra da credibilidade, um dano reputacional e um acontecimento que será seguramente aproveitado por chineses e russos precisamente numa altura em que os confrontos geopolíticos entre as maiores potenciais mundiais estão ao rubro, que poderá revelar-se o maior prejuízo e que colocará aquela que ainda é a maior economia do mundo numa posição de extrema fragilidade, se falhar o pagamento aos credores. E este poderá até ser o principal trunfo da Casa Branca para convencer os republicanos a fechar um acordo que evite semelhante humilhação.

Uma humilhação que ocorrerá mais tarde ou mais cedo, mas cujo principal detonador não deverá ser o limite da dívida (afinal, como em tempos referi aqui no Tornado, a dívida norte-americana, tal como a dívida mundial, é impagável), mas a erosão que a progressiva perca de protagonismo do dólar irá provocar na capacidade de financiamento de uma economia em degradação.

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