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Sábado, Abril 20, 2024

O mundo muda e alguns não querem ver…

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Houve, há dias, eleições em três países: Reino Unido, França e Itália. Neste último caso, eleições autárquicas. As legislativas serão com muitas probabilidades só em 2018. É preciso reflectir sobre elas.

As eleições no Reino Unido e na França

Em particular, os socialistas e os sociais-democratas estão cada vez mais obrigados a fazer uma profunda reflexão sobre o futuro. Trata-se, a meu ver, de um imperativo inadiável. Não é tranquilizador que ilustres socialistas exaltem o Labour de Corbyn como se este tivesse sido o vencedor moral das eleições,  perdidas com menos 56 mandatos do que o vencedor, o Partido Conservador, que, por sua vez, ficou a 8 mandatos da maioria absoluta.

É claro que a Senhora May, com a abrupta antecipação das eleições, queria esmagar o Labour e sair reforçada para melhor negociar o Brexit com Bruxelas e, claro, para se manter confortável no poder. Não obteve o que queria – também por mérito de Corbyn, certamente -, falhando o objectivo, e agora está em sérias dificuldades para formar governo. Com o DUP, conseguirá uma curta maioria de 2 deputados, assinando com este partido uma aliança politicamente muito delicada. Mas as dificuldades de May não podem ser interpretadas como sendo resultado da estrepitosa, fulgurante e visionária liderança de Corbyn, porque elas têm explicações mais profundas, a começar pela desastrosa prestação da Senhora.

Corbyn, interpretando uma visão ortodoxa da velha esquerda social-democrática, com soluções que vão da socialização dos sectores estratégicos (lembrando a famosa Cláusula 4 do Estatutos) até a uma muito problemática e pouco convicta visão do processo de integração europeia (em nítido contraste com a visão generalizada dos socialistas europeus) ou a uma concepção algo errática da política internacional, resistiu a um processo que muitos declaravam demolidor para o Labour.

Visão crítica do establishment

Pôde assim adiar o fim da sua liderança ou até construir uma alternativa centrada mais na fraqueza da adversária do que numa visão em linha com os desafios actuais e futuros (não desvalorizo obviamente os méritos pessoais e a resiliência de JC).  Venceu, sim, claramente as sondagens, mas perdeu as eleições. E, no meu modesto entendimento, a sua visão política não interpreta as profundas mudanças que já estão a ocorrer nas sociedades contemporâneas. O que ele representa (e nisto aproxima-se de Bernie Sanders) é, de algum modo, uma visão crítica do establishment representado pelo centrismo convencional. Certamente, e com fundamento.

Uma visão que, de resto, está a colher fortemente por todo o lado, à esquerda e à direita. E até ao centro. O fracasso da “realpolitik” nacional, praticada há décadas, muito assumida e hipocritamente pouco declarada pelos partidos da alternância governativa, está claramente a ser capitalizado pelas forças ou tendências anti-establishment. Os casos de Sanders e de Corbyn incluem-se nesta tendência. Ou seja, o establishment, sendo representado pelos sistemas de partidos que albergam os partidos da alternância governativa, alimenta, com o seu comportamento político, as tendências reactivas, sejam elas de direita, de esquerda ou até de centro, quando elas se apresentem inovadoras.

E este é o caso de França, com Emmanuel Macron e o seu “La République en Marche”, mas é também, na óptica da esquerda, o de “La France Insoumise”, de Jean-Luc Mélenchon, ambos promotores de dois “Instant Parties” que, num ano, chegaram ao topo da política francesa: o primeiro, a Presidente da República e a líder/figura tutelar de um movimento que, previsivelmente, irá arrecadar a maioria absoluta dos mandatos na Assembleia Nacional, já no dia 18.06 (obteve, na primeira volta, 28,21%), e o segundo mantendo relativamente a força eleitoral ao conseguir um respeitável quarto lugar no ranking da política francesa (com 11.03%), à frente do PS (com 7,44%; dados do Ministério do Interior francês).

Os partidos socialistas

O caso dos partidos socialistas é grave. Não são úteis meias palavras! Algo mudou tão profundamente que ainda não foi interpretado suficientemente por eles. E o processo começou há muito, com a queda do Muro de Berlim e com a exaustão da renda de posição de que estes partidos dispunham (entre a visão liberal e conservadora e a visão maximalista de esquerda).

Algo parecido com o que, na altura, disse, num belo artigo (“A solidão da democracia”), Claus Offe, relativamente à democracia representativa: agora, disse ele, ela já não pode limitar-se a dizer que é melhor que os sistemas políticos orgânicos, mas tem de demonstrar que vale por si, que é boa por si e não em comparação com outros sistemas. Daí até hoje passaram quase três décadas. Muita coisa mudou. E em particular a cidadania e os seus meios de comunicação, de informação, de automobilização e de auto-organização. Verificou-se uma progressiva desintermediação da política (pelo menos nos moldes clássicos).

Assistimos à globalização (sobretudo financeira), à crise das dívidas soberanas e do modelo social europeu, às migrações e à crise dos refugiados, ao crescimento político do integralismo de inspiração religiosa… tudo isto sem que tivesse ocorrido uma recomposição da geometria política internacional. Bem pelo contrário!

Perda de consistência e influência

Neste contexto, o problema dos partidos socialistas e sociais-democratas continua a evidenciar-se de forma preocupante já que se está a verificar uma progressiva perda de consistência e de influência verdadeiramente dramática.

O Pasok grego, com cerca de 6%; o Partido socialista francês com cerca de 7%; o PSOE, a disputar o terceiro lugar com “Podemos”, um partido de nova geração e de inspiração populista; o Partido democrático italiano a disputar a liderança com outro partido de nova geração e também de inspiração populista, o MoVimento5Stelle, e com um centro-direita em forte recomposição (nas recentes eleições autárquicas o centro-direita bateu-se com o PD de igual para igual, tendo o M5S revelado alguma inconsistência – vai à segunda volta somente em oito municípios num total de 140); na Holanda, o partido social-democrata a ficar numa posição quase residual; na Alemanha, o SPD, passada a euforia da liderança de Martin Schultz, mantém-se em segundo lugar (31% contra 34% da CDU, na média de cinco sondagens feitas em Abril).

E não me digam – como já ouvi – que se o sistema eleitoral fosse proporcional o Labour teria ganho! O jogo foi jogado com as regras disponíveis.  Em Portugal, é sempre bom lembrá-lo (e eu sou membro do PS e apoiei esta solução e esta liderança), o PS perdeu as eleições para Passos Coelho. Encontrou, e bem, a fórmula para governar e desbloqueou politicamente o sistema, o que foi extremamente importante. Prepara-se agora para fazer uma revisão estatutária. Aplaudo. Espera-se é que esta revisão vá ao fundo dos problemas e não acabe prisioneira dos habituais bloqueamentos de poder. Os problemas são evidentes, como vimos. Há que lhes dar resposta.

Finalmente

Ou seja, se quiserem ver para além do próprio nariz e dos próprios interesses imediatos e de parte, é bom que os partidos socialistas e sociais-democratas revejam urgentemente a sua própria concepção política acerca de uma sociedade que está em rápida e profunda mudança, mas também a sua própria identidade organizacional, sobretudo naquilo que mais directamente implica as suas cada vez mais problemáticas relações com a cidadania.

É, pois, necessário que se alicerce com robustez uma mundividência política em linha com os desafios que nos batem à porta e capaz de fornecer aos militantes e aos cidadãos uma cartografia cognitiva que os guie num mundo cada vez mais complexo, exigente e global, em vez de se continuar a papaguear à exaustão as velhas e tão gastas fórmulas políticas ou a cantar hinos de exaltação quando à morte anunciada sobrevém simplesmente uma doença grave, mas curável.

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