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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A Biblioteca da Alma

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Biblioteca da Alma - Conto / Parte 2

No ano em que conheceu Paula, sua aluna na faculdade onde ensinava, alterou completamente o tipo de livros que habitualmente comprava e lia. À sua paixão súbita e intensa pela rapariga correspondeu a leitura exaustiva de alguns poetas gregos clássicos e contemporâneos. Aqui, a obsessão por Constantin Kavafis e por tudo o que dizia respeito a esse poeta e a Alexandria foi particularmente notória. Também se interessou por poetas japoneses. E foi nessa altura que releu toda a obra de Jorge Luís Borges.

Releu, comprando novas edições, pois era-lhe insuportável a memória que estava associada aos livros de Borges que já se encontravam na Biblioteca. Estranhamente, sentiu que, quando pegou nessas edições, tudo isso afectava a sua relação com Paula.

Paula também comungava do interesse do homem por livros. E foi assim que começaram a sair juntos, a visitar Bibliotecas, exposições e frequentar livrarias e alfarrabistas. Dessas vezes, o homem fazia questão de oferecer livros a Paula. Esta aceitava pois tratava-se de algo que, também para ela, era essencial. E o homem ficava feliz. Era uma felicidade nova, que nunca lhe tinha acontecido.

Essas peregrinações conjuntas fizeram aumentar a paixão entre ambos. Simultaneamente, a sua mulher começou a desconfiar dos novos hábitos do homem. Passava mais tempo fora de casa. E a partir do momento em que começou a frequentar a casa de Paula, que vivia sozinha, começou a chegar tarde a casa.

Progressivamente, o homem começou a deixar livros em casa de Paula. Os que comprava quando saía com ela e, passado algum tempo, os que trazia da sua Biblioteca e lhe emprestava. Fazia-o de uma forma que era para si muito estranha. Porque lhe custava muito emprestar livros. Ou melhor, muito raramente os emprestava. Os seus livros eram a sua história e não gostava de se desfazer, mesmo que durante algum tempo, de parcelas da sua vida.

Mas fazia-lhe bem essa transação. De certo modo, aprendia novas formas de estar. E reconhecia que Paula também sabia cuidar dos livros. Um dia, quando Paula pretendeu devolver-lhe alguns livros que entretanto já lera, o homem achou que não tinha sentido levar os livros de volta. O facto de terem sido lidos pela rapariga, atribuía-lhes um significado que faria com que ficassem desajustados na sua Biblioteca. Aí, recusou levá-los.

No entanto, o homem sentiu um estremecimento interior no momento em que Paula aceitava os livros de volta e tornava a colocá-los na sua estante.

Continuando nesta curiosa transação, o homem começou a reparar que a sua Biblioteca começava a registar algumas clareiras. Mas não deixava de sorrir quando notava esses espaços vazios, sem livros, porque de certa forma comemoravam a sua nova relação, a sua nova paixão.

Das poucas vezes que a sua mulher vinha à Biblioteca também notou que faltavam algumas filas de livros. Sentindo-se curiosa em saber se essas falhas progrediam e aumentavam, pelo que começou a aparecer mais vezes, mesmo na ausência do marido, não pôde deixar de se sentir preocupada. Ao que parece, foi aí, perante algumas estantes vazias, que começou a desconfiar da nova situação do marido.

Estalaram algumas discussões, nomeadamente, quando a esposa reparou que os livros que faltavam eram, na sua maioria, pequenos livros, romances breves, muita poesia e alguns livros de pintura, permanecendo inalteráveis as secções relativas a enciclopédias e dicionários, bem como os romances históricos, muito em voga nos anos oitenta. Ela concluiu rapidamente que o marido estava a viver uma paixão amorosa. Por isso mesmo, interrogou o marido sobre a ausência prolongada de alguns livros.

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O homem apressou-se a inventar uma desculpa qualquer relacionada com o trabalho na Faculdade, mas a mulher achou que se tratava de uma desculpa muito mal elaborada, quando esperava dele um discurso mais estruturado e fundamentado. A esposa achou que aquela desculpa tão elementar e prosaica não estava de acordo com a estrutura mental do companheiro que ela sempre conhecera.

Para ela, aquela justificação pindérica não podia deixar de constituir um aviso subliminar. E que o marido, tão pouco atreito a mudanças, estava diferente.

As discussões não ficaram por aí. Se existia alguma nova mulher na vida dele, era a pergunta mais insistente. Uma pergunta tipicamente feminina. Mas o homem respondeu-lhe que a sua vida eram apenas os livros e que isso bastava-lhe muito bem. A mulher não sentiu qualquer vacilação na resposta do marido, apesar de saber que estava a atingir o coração do seu relacionamento, que estava a pôr em causa a franqueza e a lealdade do companheiro de há mais de vinte anos.

Qualquer homem, mesmo o mais farsante, seria incapaz de deixar escapar um mínimo sinal. Uma qualquer tremura na voz, uma ligeira alteração da respiração, um músculo facial descompassado, a desconfortável posição das mãos, tudo isso, qualquer coisa de tudo isso poderia escapar ao controlo do seu autor.

A mulher, escrutinadora, não notou nada, porque nada havia a notar. O homem estava claramente convencido do que estava a dizer. Não se sentiu atraiçoado pelas palavras escolhidas. Achava que não estava a mentir. É que nem sequer se preocupava por encontrar uma mentira piedosa. Não.

A sua vida estava de facto relacionada com os livros. Mas quando chegava a casa de Paula percebia que a realidade era outra. Foi-se habituando a reparar que quando lhe trazia livros para casa, para esta casa, estava a entregar-se, como nunca julgou que fosse possível fora das histórias dos livros. À medida que as pilhas dos livros íam crescendo nas diversas divisões da casa de Paula e se ía desbastando a sua Biblioteca, sentiu que a sua vida anterior ía perdendo sentido. Isso mesmo confessou à rapariga. Esta percebia tudo e sorriu. Amava-o. Amavam-se. Aí o homem percebeu que estava a construir uma nova Biblioteca.

Leia a 1ª Parte deste Conto: A Biblioteca da Alma

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