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Sexta-feira, Julho 4, 2025

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XXI. O dia em que te perdi.

Minha memória,

No dia em que te perdi, minha memória, começou por me chover forte dentro do peito. Uma água abundante afogou-me a alma e a razão e com elas, os acontecimentos.

Não sei exactamente a causa desta perda, só sei que nem a mim me encontrei porque não te vi, durante um tempo que me pareceu quase a eternidade.

Sem te encontrar eu não existo. Não sabia que era assim até isto acontecer.

O dilúvio, chamo-lhe assim, afogou-me também o nome os rostos e a consciência.

Tudo o que me disseram posteriormente que fiz e disse nesse dia não me pertence.

Foi um dia inteiro, dizem-me, que vivi na pele de outrem ou então, num limbo absoluto.

A única coisa que sei é que é de água esse lugar sem lembranças. Uma avalanche de água que lava tudo, arrasta tudo. Arrastou-me a mim e, possivelmente, a ti também.

Não sabia que as memórias eram afogáveis, mas tu foste-o nesse dia.

Quando acordei, foi como se nada se tivesse passado. Nem um minuto. Nem um segundo. O tempo colou-se imediatamente ao último dia que passáramos juntas, minha memória. Essa é uma particularidade do tempo, o poder circular por aí, para a frente e para trás a seu belo prazer.

Traze-lo ao colo, ao tempo, eu sei. Nunca me constaste deste pormenor que é o da memória trazer o tempo ao colo mas eu percebi.

O tempo, é um dos teus filhos predilectos minha memória. Deixa-lo aqui a sorrir, ao meu lado e a acompanhar-me os passos e partes para os teus afazeres. Nesse dia de esquecimento, o tempo não estava. Levaste-o em absoluto e mal lhe vislumbrei os cabelos soltos na curva do amanhecer.

Acordei por isso sozinha e esquecida de tudo. Sem tempo e sem lugar definido também.

O lugar é um sobrinho favorito da memória que brinca todos os dias com o tempo e nesse dia não apareceu, sequer.

Acordei sem ti, sem tempo, sem lugar e sem mim, num vazio de tudo, de todos e de silêncio. Não havia sequer gargalhadas, sequer o assobio melodioso de um pássaro que conseguisse romper esta barreira que me pareceu tão definitiva: a perda da memória e junto com ela, do tempo, de todo e qualquer lugar e de mim.

O meu nome, esse, esqueci-o de imediato assim que me levantei. E com ele, tudo o que me define, me completa me aconchega nesta capa mais ou menos obliqua que é o mundo. Deixei pois de existir.

Não me lembro de nenhum gesto que tenha feito. Não em lembro de nenhum dito, não me lembro sequer da respiração nem do ritmo cardíaco, esse sopro constante que mais do que nos acompanhar, nos é, realmente. Sem respirar perdemos todo o ser e nunca mais amanhecemos.

De tudo o que se se passou nesse dia se é que se passou alguma coisa, as dúvidas assaltam-me constantemente, não resta senão nada.

Felizmente voltas-te minha memória, numa altura qualquer que eu não consigo definir mas voltas-te. Trouxeste de novo o tempo, o lugar, a possibilidade de me ouvir.

Alguém que assistiu a tudo contou-me: da tua volta e da minha não essência que se passou na tua ausência.

Confesso que tive muito medo minha memória porque percebi que sem ti podia deixar de existir. Sem ti, não existo de facto. Tudo o que se passar sem ti é como se nunca tivesse acontecido.

Peço-te que não te ausentes mais minha memória. Não quero nunca mais deixar de ser, outra vez.

 


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