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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A questão Catalã

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Começo por uma longa citação de um artigo do escritor espanhol Javier Marías (“Las palabras ofendidas”), porque me parece um correcto retrato da questão catalã, que tanto está a preocupar a Espanha e a União EuropeiaUn país con un autogobierno mayor que el de ningún equivalente europeo o americano (mayor que el de los länder alemanes o los estados de los Estados Unidos), que lleva votando libremente en diferentes elecciones desde hace casi cuatro décadas, a cuya lengua se protege y no se pone la menor cortapisa; que es o era uno de los más prósperos del continente, en el que hay y ha habido plena libertad de expresión y de defensa de cualesquiera ideas, en el que se vive o vivía en paz y con comodidad; elogiado y admirado con justicia por el resto del planeta, con ciudades y pueblos extraordinarios y una tradición cultural deslumbrante…; bueno, sus gobernantes y sus fanáticos llevan un lustro vociferando quejosamente “Visca Catalunya lliure!” y desplegando pancartas con el lema “Freedom for Catalonia”. Sostienen que viven “oprimidos”, “ocupados” y “humillados”, y apelan sin cesar a la “democracia” mientras se la saltan a la torera y desean acabar con ella en su “república” sin disidentes, con jueces nombrados y controlados por los políticos, con la libertad de prensa mermada si es que no suprimida, con el señalamiento y la delación de los “desafectos” y los “tibios” (son los términos que en su día utilizó el franquismo en sus siempre insaciables depuraciones). Se permiten llamar “fascistas” a Joan Manuel Serrat y a Isabel Coixet y a más de media Cataluña, o “traidor” y “renegado” a Juan Marsé. Ninguno debería amargarse ni sentirse abatido por ello: es como si los llamaran “fascistas” las huestes de Mussolini. Imaginen el valor de ese insulto en los labios que hoy lo pronuncian

Sim, a Catalunha é uma região livre como uma nação dotada de autogoverno no interior de um grande país, a Espanha! Mas pelos vistos não lhes basta e, então, desatam a falar de tudo como se fossem uma colónia esmagada nos seus direitos por um país opressor! Não se compreende esta alucinação histórica dos chamados independentistas!

E acrescenta Marías, no depoimento sofrido de quem viu seu pai, o filósofo Julián Marías, preso político e proibido de ensinar na Universidade, no tempo de Francisco Franco: dizer o que dizem ofende os que verdadeiramente nunca votaram, os que vivem ou viveram sob ditadura, os que lutaram e sofreram pela liberdade, os que não têm casa nem pão, os que não podem cuidar do seus filhos nem educá-los. Sim, compreendo Marías e estou de acordo com ele.

Na verdade, esta chamada luta pela liberdade contra a opressão é uma autêntica farsa, um nacionalismo retrógrado e um erro histórico, contrários à tendência evolutiva da história. Sei do que falo porque conheço a diferença entre viver em ditadura e viver em democracia, mesmo com todos os seus problemas, insuficiências e erros.

Encapsular o futuro no passado!

Mas lêem-se por aí muitas fundamentações históricas do direito à autodeterminação, enquanto Estado-Nação, da Catalunha. Uns tantos que foram às enciclopédias estudar a região para exibir um saber de última hora que esconde falta de ideias e de lucidez sobre o tempo em que vivemos. Mas há razões históricas, sem dúvida. Como há para a Galiza ou para o País Basco. Ou para a Bretanha. Para o Veneto, o Alto Adige ou a Lombardia. Ou para a Comunidade flamenga, na Bélgica. Ou para o Schleswig Holstein, na Alemanha.  E por aí adiante.  Sem dúvida.

Mas essas razões já não resistem a uma análise política e histórica dos tempos que estamos a viver na Europa e no mundo. Porque a história não se constrói às arrecuas e em grande velocidade em direcção ao passado ou como mero memorial político levantado aos antepassados como alavanca de um futuro que, no essencial, já não está inscrito nas razões do passado, pela simples razão de que a força e a velocidade desse futuro tem vindo a acelerar as exigências do presente.

O que temos na verdade diante de nós é, afinal, uma política “victimista y retrorromántica”, como alguém lhe chamou. E é por isso que os memoriais não servem para construir o futuro, mas sim para lhe transmitir identidade simbólica e promover um sentimento de pertença e coesão. Mas permanecemos ainda no domínio do simbólico. Só que às vezes os memoriais, em vez de promoverem a identidade, acabam por criar divisão e separação.

E, na verdade, nestes movimentos memorialistas, mais do que a afirmação de uma identidade, tende sempre a irromper algo profundamente nostálgico e sentimentos radicais de diferença em relação ao outro, mesmo quando os ventos da história sopram em direcção ao futuro e correm atrás de mais igualdade, mais convergência e mais integração. Mas a identidade também se pode reconstruir a partir do futuro, quando o projecto for visionário e consistente. De certeza, pois não se constrói futuro encapsulando-o no passado, a pretexto da recuperação de uma qualquer identidade perdida nos confins do tempo e com valor puramente simbólico.

Autodeterminação?

Também se lêem hinos ao direito à autodeterminação dos povos. Quem contesta? A ONU tem doutrina fixada sobre a matéria. Autodeterminação justifica-se sobretudo quando há opressão externa. Não aplicável, por isso, a este caso. E também é verdade que a autodeterminação tem várias formas e gradações – sem que assuma necessariamente a forma de secessão – que podem ir até ao Estado federal ou mesmo até à confederação. A Espanha é, como diz Marías, uma democracia com políticas de autonomia muito avançadas, sendo naturalmente neste registo que o problema das identidades étnicas, linguísticas e culturais deve ser politicamente resolvido.

Mas vêem-se também os mesmos de sempre a falar da opressão capitalista do Estado espanhol ou da Monarquia sobre a República (popular?) da Catalunha. O mote aqui é o da opressão capitalista de uma região que, dizem alguns, subsidia um país inteiro… Acontece que a Catalunha é livre, vive em economia de mercado e é governada por instituições democráticas livremente eleitas que no seu ideário têm inscritas as palavras solidariedade e coesão.

Na verdade, a questão de fundo centra-se na relação entre a Catalunha, a Espanha e a União. E, neste quadro, não é possível deixar de referir o efectivo estatuto de autonomia de que goza ou até de um futuro estatuto federal ou mesmo confederal que possa vir a ser negociado e inscrito na Constituição de Espanha. O que aconteceria se todas as autonomias reivindicassem o mesmo? E se, depois, o fenómeno se expandisse com mini-Estados a pulular por essa Europa fora? O mapa já circula por aí e não é bonita de se ver esta gigantesca fragmentação.

Se a União a 27 já é complexa o que seria com, por exemplo, 40 Estados? É sensato que num espaço como este, construído com esforço, imaginação e ambição sobre a ideia de paz, continuemos a assistir ao lamentável espectáculo de uns a unir e outros a dividir? Em plena globalização? De uns a integrar e outros a desintegrar? Como se a fragmentação fosse a boa resposta a uma globalização que ameaça constantemente com uma dominadora lógica globalitária, com potentados económicos ancorados em dumping de concorrência feroz e imparável. Como se a ordem de Vestefália ainda fosse a ordem do futuro e como se a lógica do Estado-Nação fizesse, para os catalães, tábua-rasa da experiência de uma democracia supranacional em lenta construção na Europa da União!

Regresso a Vestefália?

Cito Javier de Lucas, professor de Filosofia do Direito e Filosofia Política na Universidade de Valência, num longo estudo sobre a questão catalã:

Lo más importante, a mi juicio, es que en uno y otro caso se comete la torpeza de utilizar una noción de soberanía que, como ya he calificado parafaseando a Beck, sería una categoría zombie, pues, como ya he recordado, responde al modelo creado por Bodin y Hobbes, absolutamente improcedente en el contexto del mundo globalizado y aún más en el marco de la UE. La soberanía ya no es una propiedad o atributo exclusivo ni absoluto del Estado nacional, ni en el orden político, ni en el económico, ni en el cultural. Y pretender por tanto resolverla en los términos del viejo orden de Westfalia, defendiendo o (re)inventando Estados nacionales según ese modelo resulta no sólo inadecuado sino incluso contrafáctico en el primer tercio del siglo XXI”

(Javier de Lucas, «Algunas falacias y errores en el debate sobre el derecho a decidir y la declaración de soberanía de Catalunya», Amnis , | 2013, mis en ligne le 20 novembre 2013, consulté le 24 octobre 2017. DOI : 10.4000/amnis.2052)

Sim, aqui reside um ponto decisivo neste processo. Promover radicalmente o nacionalismo no interior de um espaço político que vem evoluindo no sentido contrário (mas ao qual declaram querer pertencer) e, ainda por cima, no interior de um espaço político (a Monarquia Constitucional espanhola) que contempla uma profunda autonomia política, institucional, cultural, linguística e económica chega a ser profundamente paradoxal, ao mesmo tempo que retrógrado e até irresponsável, porque desestabiliza, divide (interna e externamente) e exclui, provocando um autêntico terramoto económico e financeiro na Catalunha e em Espanha (são quase mil as empresas que já deslocaram a sua sede da Catalunha).

E acontece que na União a que querem pertencer, afinal, já existe uma moeda única e não há fronteiras. Ou seja, vão para um mundo sem fronteiras construindo muros. Além disso, muitas das competências já transitaram para a União. De facto, trata-se de uma Europa que, abrindo o espaço político em que se inscrevem os Estados nacionais, procura evoluir para uma cidadania europeia, constituindo-se como um espaço mundialmente influente, mas que em nada se sobrepõe às identidades nacionais. Bem pelo contrário, este desenho até pode favorecer as identidades nacionais e regionais, dando-lhes uma expressividade política que antes não tinham à escala mundial.

O independentismo é, assim, um movimento que vai às arrecuas e que contraria o projecto europeu. “Verfassungspatriotismus”, patriotismo constitucional é algo que pode bem ser adoptado à escala europeia e precisamente como garante das identidades nacionais e regionais.

Este conceito abre a cidadania a uma escala supranacional, ancorando-a nas grandes cartas de princípios que a humanidade acolheu como universais, mas por isso mesmo ele acolhe melhor no seu seio, legitimando-as e dando-lhes dignidade cívica, as identidades regionais, étnicas religiosas ou nacionais. Para tanto, basta que se verifique um efectivo “patriotismo constitucional”, adesão e respeito pelas normas e valores constitucionais. Trata-se de um mundo que se abre ao futuro sem rejeitar o passado, enquanto estes movimentos nacionalistas querem abrir-se ao passado, fechando-se a um futuro que parece desconhecerem.

Além disso, a Espanha, sendo um País que precisa de uma unidade política reforçada, e não diminuída, possui uma identidade muito precisa, pela língua, pela cultura, pela música, pela comida… por uma muito consistente e poderosa “hispanidad” (Miguel de Unamuno, nos inícios do século) que, mais do que fragmentar, tende a unir sob o tecto da língua e de afinidades culturais!

Não, não faz sentido hoje este nacionalismo que cria mais problemas do que os que  resolve, divide e separa o que estava unido e vai em sentido contrário ao movimento da história e a uma lógica de integração política europeia. Mais: agita demónios que não conviria acordar. Deve-se lembrar que a CECA foi criada para unir antigos beligerantes, tomando como ponto de partida precisamente a programação conjunta da gestão económica dos materiais usados na guerra, o carvão e o aço. Guerra que resultou da fragmentação da Europa e não da união dos seus povos.

A Catalunha, a Espanha e a União

Dir-me-ão os mais libertários: mas se os catalães quiserem a independência têm toda a legitimidade para fazer um referendo e aprovar uma constituição para um novo Estado-Nação! Uma tal vontade deverá ter em conta o contexto em que a querem afirmar. Em primeiro lugar, a Espanha e, depois, a União Europeia.

Em Espanha, a Catalunha dispõe de órgãos de governo próprios legitimados pela Constituição espanhola de 1978, numa autonomia profunda e susceptível de ser ainda alargada – desde que no quadro constitucional, como disse – até ao nível federal ou confederal. Mas a verdade é que o contexto também é uma variável e conta tanto como a tradição reivindicada da autonomia. O contexto é territorial, cultural, linguístico, económico e político. E internacional.

A Catalunha não vive num vácuo onde possa afirmar a sua vontade de forma absoluta. Vive, desde logo, num espaço geográfico concreto onde se fala espanhol, numa economia interligada (veja-se o vai-e-vem das empresas), num pano de fundo cultural que é hispânico, num espaço político que é espanhol e europeu e num mundo global que funciona por blocos (veja-se o caso das negociações do Reino Unido com a União sobre o mercado único, um potente bloco económico).

Os catalães têm de metabolizar o fluxo da história e esse não parece ser muito de feição para retrógradas aventuras nacionalistas no interior de um espaço que precisa mais de integração do que de desintegração ou fragmentação. E eu creio que a questão é tão simples que até o bom senso a resolveria se não houvesse irracionalismo a determinar este processo. Aliás, começo a ver com preocupação o que poderá vir a acontecer em Itália, um país com um Estado unitário recente e onde já começam a surgir movimentos autonomistas que poderão, amanhã, vir a ter pretensões que vão além da reivindicação do estatuto de regiões especiais ou “a statuto speciale”, como a Lombardia ou o Veneto, por exemplo.

Veremos o que ainda acontecerá ao Reino Unido com a saída da União Europeia. E com a Escócia. E trata-se de um Estado soberano e poderoso. Decisão verberada pela maioria dos europeus, considerada má para o Reino Unido e má para a União. E, porventura, agora já também pela maioria dos ingleses.

A União Europeia e o mundo

Estou a falar de uma realidade substantiva e não de uma mera construção intelectual. O “adquirido” da União é gigantesco, apesar das actuais dificuldades. Vejamos. A Europa foi beijada pela paz, sua ideia inspiradora. Para que conste: cerca de 50 milhões de mortos nas duas guerras mundiais! É a maior potência comercial e o maior mercado único do mundo. Com poucos anos de vida, o euro tornou-se a segunda moeda mundial, 30% contra 43% do dólar USA, impedindo que os USA determinem, sozinhos, directamente, através da moeda, a economia e as finanças mundiais.

Compreende-se, por isso, o ataque cerrado contra o euro por parte dos poderes financeiros internacionais, com a preciosa ajuda das três agências de rating (Fitch, Standard&Poors, Moody’s, com cerca de 96% do mercado mundial de rating). É o segundo PIB mundial, com 22% (contra 24% dos USA). Dois terços dos europeus querem estabilidade na União, 80% defendem as quatro liberdades (livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços) e 70% defendem o euro. Depois, 1,7 milhões de pessoas da União desloca-se para outro Estado-membro por razões de trabalho ou de estudo.

Sendo demograficamente preocupante (em 2015 a União exibia 6% da população mundial, quando, em 1960, exibia 11% e, em 1900, 25%), é, ao mesmo tempo, um bom indicador da evolução civilizacional da União ter uma idade média de 45 anos (projecção para 2030), possuindo um dos mais avançados Estados Sociais do mundo. É um espaço de 500 milhões de pessoas em 400 milhões de quilómetros quadrados. Líder (com 40%) nas tecnologias das energias renováveis e nas “cidades inteligentes, a União possui um alto índice de desenvolvimento tecnológico e informacional.

Ou seja, a União tem todas as condições para se tornar um espaço de influência mundial muito relevante e para influir, enquanto tal, decisivamente no processo de globalização, dando voz mundial aos seus Estados-Membros, desde que consiga firmar uma robusta e eficiente organização institucional.

É deste espaço que a Catalunha quer sair? É esta força que quer contrariar com a sua involução nacionalista? É a fragmentação da Europa que quer promover, consciente ou inconscientemente? Na verdade, do que se trata verdadeiramente é de nacionalismo – de esquerda e de direita – de fechamento num mundo que, com a globalização, se está a tornar cada vez mais aberto, interdependente e competitivo, com grandes blocos económico-financeiros em acção e em condições de imporem lógicas que os países singulares, mesmo os maiores, já não estão em condições de travar.  É isto que querem? Podem dizer que não, mas é isto mesmo que, na realidade, estão a promover.

Finalmente

É claro que há muitos que alinham nesta aventura, à esquerda e à direita, sobretudo os nacionalistas e os que nunca viram com bons olhos o processo de integração europeia. Não me revejo neles, até porque não penso assim e, tendo vivido muitos anos em três países europeus (Alemanha, Bélgica e Itália), sei muito bem o que pude retirar desta extraordinária experiência. E, por isso, por mais esforço que faça para entender os independentistas catalães, não consigo. Mas certamente será por insuficiência minha.

Duma coisa estou certo: não os entendo, mesmo sendo um militante da causa da liberdade, da democracia e da autodeterminação dos povos. E acabo como comecei, com Javier Marías (e, já agora, em homenagem a seu pai): a conversa sobre liberdade destes autonomistas sabe-me, também a mim, a ofensa aos que, de facto, nunca souberam o que é a liberdade e a democracia porque sofreram ou sofrem permanente repressão no corpo e na alma, perpetrada por miseráveis regimes ditatoriais.

Ah!, não queria terminar sem confessar um pecadilho: adoro Espanha, da Galiza à Andaluzia, à Catalunha!

 

 

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