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Quarta-feira, Março 27, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Os jantares na Quinta.

Quando ouvia falar em convidados para o jantar, a menina Tizinha ficava alegre, sobressaltada. Pessoas que vinham do mundo lá fora, o mundo que ela tentava espreitar nos livros que lia sentada nas almofadas.

O avô Vidal e a avó iam presidir à mesa. E quando havia convidados a realidade transformava-se e  surgia um palco brilhante onde até a Tizinha era espetadora encantada.

A atual enfadonha e beata avó tinha miraculosamente nascido no Brasil. Sobeja era a história de que tinha vindo para Portugal com dez anos de idade. Acompanhada  pelo pai e dois irmãos. Seja, os meus tios avós, José e Valdemar.

Pai austero, cabelo branco e bigode de pontas caídas, colarinho duro, engomado. A mãe falecida nos Brasis ao que se sabia, de parto. Acompanhando a menina órfã, uma detestada governanta com o estranho e amaldiçoado nome de dona Pedina. Ora pela descrição, muitas vezes repetida pela avó, a dona Pedina, entretanto falecida, era a imagem viva que a Tizinha fazia da sua própria avó.

Seja, tinha todos e tiques e manias que a menina observava no comportamento daquela que era a respeitada mulher do avô Vidal. A mesma frieza, a mesma distante arrogância, a mesma crendice, o mesmo medo de todos os santos.

Adiante, a menina gostava muito dos jantares em que havia visitas. Sobretudo quando as visitas vinham do Brasil, e eram parentes da Avó. Entre todos, só havia histórias de pasmar.

Segundo a narrativa viva da avó, no Brasil tudo era lindo, toda a fruta era a delícia do pomar, todas as sopas, todas as carnes, peixes, molhos eram gulodices do jardim de Éden. No Brasil, aragens, ventos, chuvas , tempestades, eram melódicas melancolias que em Portugal lhe faltavam. Em Portugal, não havia nada que a desenfastiasse!

Os convidados traziam flores e latas redondas de goiabada. As flores iam para as jarras de cristal. As latas de doce a avó olhava-as e voltava a olhar, meti-as no armário nobre da sala de jantar e abria-as anos depois, quando já estavam estragadas. Eram pérolas que vinham do Brasil, não para serem comidas, mas para serem veneradas.

Jantar. Mesa grande, toalhas de linho e rendas, talheres de prata, cristais da Boémia, champagne, rolhas a saltar!

E os convidados! Mulheres exóticas, sedas selvagens, turbantes com aigrettes, homens de plastron e laço.

Sim, o Rio de Janeiro continuava lindo, em Manaus a vida continuava faustosa. Ali tinha sido criada  Biblioteca Pública e o primeiro jornal com o nome de “Estrela do Amazonas”, de propriedade de um tal Manuel da Silva Ramos que ainda seria da família.

Nesses jantares não havia ladainhas nem terços, a avó era uma brilhante mulher mundana, que tinha viajado, contava histórias passadas em Mónaco, em Biarritz, em St Maurice, nos Pirenéus.

Histórias passadas nos casinos do sul da França, nas estações invernosas das montanhas suíças.

Esse sim, era o mundo que a Tizinha queria visitar.

Onde e como a avó tinha invertido a marcha  dos acontecimentos, deixando de ser a mulher do mundo para passar a ser a mulher da Igreja, a assustada mulher que invocava Santa Bárbara a cada trovão, a rígida  controladora da neta engaiolada?

Teria a detestada avó sido raptada pela Dona Pedina e transformada na bruxa má dos contos de Grimm?

A menina Tizinha ponderava hipóteses, sem ainda ter adquirido tal conceito cientifico.

Na mesa da sala de jantar, o ritual prosseguia,agora a avó contava de um tal acidente de carro que tinha tido na Suíça, quando o filho da amiga dona Nazaré, o estouvado Joaquim, tinha atirado o Cadillac contra uma árvores que a curva abrupta não prevenira. A amiga Nazaré com o braço partido, a amiga dona Amélia com uma bota gessada. E a pobre da avó que tinha ido para a Suíça divertir-se presa naquele hotel, a caminho diário do hospital em que as amigas estavam internadas?

Nada, não.

A Avó tinha telegrafado ao Avô Vidal que se tinha metido no carro e, meu herói, tinha feito milhares de kilometros para a ir recolher ao hotel fino mas entediante onde tinha ficado alojada.

O meu cotovelo na mesa, a palma da minha mão a apoiar o meu queixo pequenino, por entre o brilho das flores, das sobremesas, das velas nos candelabros, eu, a Tizinha pensava:

_ Mas esta minha avó, a que me calhou em sorte, aquela com quem os meus confiantes pais me deixaram, será  uma tremenda egoísta?

Será que ela confessa  os pecados de que me acusa a mim?

Mas, os jantares eram maravilhosos.

Entre dois mundos, a menina Tizinha sentia o apelo dos índios manaós. Irmãos de armas.

Sentia-se recompensada.

Ilustração: Os jantares na Quinta, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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