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Quarta-feira, Março 27, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

A sala de jantar.

A sala de jantar, sendo solene, era também um teatro de encantar.

A enorme cristaleira e os dois aparadores de madeira preciosa com espelhos de cristal, eram guarnecidos, na parte inferior, de duas portas cada um. Estas portas tinham cenas esculpidas em alto relevo na madeira. Ou seja havia uma galeria de seis quadros para delinear com os dedos.

A Tizinha era ainda muito pequena e sentava-se no chão a passar o indicador pelas cancelas, casinhas e árvores da floresta e associava o que via e tocava ,com as histórias que já era capaz de ler e com as lendas que a Ama Helena contava.

A mesa era enorme, pesada, com pés trabalhados e podia abrir-se misteriosamente podendo mais de vinte pessoas sentarem-se nas lindas cadeiras com tampos e costas de couro com botões dourados.

Dos muitos jogos que se podiam organizar durante o verão, quando primos e primas e uma ou outra amiga convidada vinham também passar as férias na quinta, havia os que se jogavam lá fora, no jardim ou nas áleas que iam até à Carranca e havia os jogos que se disputavam dentro de casa, talvez nos dias em que a chuva aparecia a visitar os campos que por ela ansiavam.

A dança das cadeiras era um jogo de salão que a Tizinha não apreciava muito. Invariavelmente ficava sem lugar para sentar, a torcer a ponta do bibe que ficava tão retorcido e húmido como o véu de renda que lhe aplicavam na cabeça para ir rezar o terço à capela. Depois, à medida que as pernas lhe cresceram e a habilidade para contornar obstáculos a faziam driblar os outros jogadores, já o jogo das cadeiras tinha mais atrativos e risos para esconder atrás da franja do cabelo. E o jogo das cadeiras podia jogar-se na sala de jantar.

Jantares havia muitos. Uns, só com as pessoas da casa e já a mesa ficava meio cheia. Outros, de cerimónia com convidados. Nessas ocasiões a mesa crescia com as tábuas de madeira que se acrescentavam e que permitiam mais pratos, talheres, guardanapos de linho bordados e a escolha solene de uma das grandes toalhas do enxoval da avó, algumas das quais ainda vinham da bisavó. E também os jantares de Natal, da Páscoa, do S. Miguel, onde, para além de uma parentela variada, ainda havia os crónicos convidados. Os crónicos dizia o Tio Valdemar.

Foi por causa das brincadeiras do Tio Valdemar que a menina Tizinha começou a imaginar que na sala de jantar solene, em cada uma das festas que se desenrolavam ao longo do ano, havia  uma engraçada dança das cadeiras.

Os lugares atribuídos a cada um dos presentes eram definidos por aquele ou aquela que fossem os presentes donos da casa. Houve o tempo em que o Avô Vidal ocupava o topo da mesa e o tio Valdemar lhe ficava em frente lá no outro longínquo lado oposto. Nesse tempo recuado a Tia Laura e o marido, o sr Amorim, a Néné ainda solteira, o Juca, a tia-avó Albertina, os pais e irmãos da Tizinha , a Tia Herminia, a prima Ermelinda, tinham lugares fixos e reservados. Depois a Néné casou e o Tio Valdemar começou a ajudar a deliberar onde sentar os Acácios, epíteto pelo qual o os recém casados passaram a ser designados.

A Ama Helena cozinhava pratos que faziam jus à sua fama de cozinheira, em que se transformara, depois do papel de ama de leite que cumprira na casa. O peito secara mas não a imensa ternura com que nos tratava.

A Maria servia à mesa com o vestido azul escuro e o avental branco enfeitado de bordado inglês de que eu tanto gostava. Ela era , aos meus olhos, um lindíssimo pilar de toda a casa.

Na cozinha, mais pessoal atarefado ajudava a que o corredor fosse um passadiço animado, por onde seguiam terrinas de sopa, cozidos e estufados, sobremesas montadas.

As garrafas, do vinho e do champanhe, às quais  que era colocada uma gravata de rendas no gargalo, os cristais, as porcelanas, tudo refulgia tal e qual como no Contos da Condessa de Segur que a Tizinha lia sem parar.

Depois o tempo trouxe a verdadeira dança das cadeiras e nenhum lugar ficava vazio pois, a cada um que nos deixava, outro elemento familiar ou amigo chegava e se sentava.

Uns após os outros, os lugares de mais evidência foram ocupados pelos que antes eram menos importantes, naquela escala hierárquica onde cada um parecia ter um lugar predestinado, e onde a Tizinha tinha sensação de que iria perder a sua cadeira como quando, muito pequenina, ainda se limitava a torcer as fitas do bibe, amachucada.

Até que chegou o tempo em que à mesa foram retiradas as tábuas de a fazerem aumentar, os que tinham partido não foram substituídos, as crianças cresceram e foram para outros lugares. A Ama Helena deixou de cozinhar, a Maria envelheceu, as crianças começaram a confundir os nomes das tias e primas velhinhas, e os tempos áureos dos grandes jantares foi sorvido pela imensidão do desencanto chamado futuro.

A menina Tizinha abandonou as cadeiras vazias e começou a encher resmas de papel com outras orações que não aquelas que lhe ensinaram.

 

Ilustração, «A minha Ama, Maria» de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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