À conversa com Mamadou Ba, dirigente da Associação SOS Racismo.
Para o dirigente, “a criminalização do racismo é o caminho para uma maior capacidade dissuasiva”. Mamadou Ba defende que sem a alteração do Código Penal, “de pouco ou quase nada valerá a alteração proposta pelo Governo”
Jornal Tornado: A publicação “Racismo e Discriminação: a lei da Impunidade” marca os 20 anos da Lei Contra a Discriminação Racial. O que mudou em duas décadas?
Mamadou Ba: Vinte anos depois da sua implementação, a actual lei contra a discriminação racial revelou-se insuficiente, ineficaz e completamente desadequada da realidade. A ineficácia da lei e dos instrumentos da sua aplicação, nomeadamente, a inoperância da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), através da sua Comissão Permanente, favoreceram a impunidade que grassa na sociedade e nas instituições.
Mas o Governo aprovou em Fevereiro alterações legislativas. O SOS Racismo quer que o Executivo vá mais longe?
As alterações agora propostas não representam o avanço desejado pois não vão no sentido da criminalização do racismo que, do nosso ponto de vista, é o caminho para uma maior capacidade dissuasiva e uma efectiva protecção das vítimas. Para o SOS, sem proceder à alteração do Código Penal, no sentido de densificar e melhor tipificar os crimes racistas, de pouco ou quase nada valerá esta alteração agora proposta.
“Convém estar muito alerta sobre o crescimento cada vez maior da islamofobia, de que se alimenta o crescimento da extrema-direita que conseguiu empurrar os partidos do ‘mainstream’ para uma retórica de ostracização dos muçulmanos”
A proposta de lei do actual Governo é para o SOS uma tentativa falhada na luta contra o racismo e xenofobia?
Para nós, como disse, esta alteração aprovada, não só peca por tardia como não vai no sentido de corresponder à exigência de mais eficácia na luta contra o racismo e melhor protecção das vítimas. O Alto Comissário para as Migrações e o Governo perderam a oportunidade de ir mais longe nestas alterações agora introduzidas e, de facto, falharam na forma e no conteúdo. Os relatórios de vários organismos da ONU, nomeadamente, o CERD (comité da ONU para a eliminação de todas as formas de discriminação racial) alertam para a necessidade de mais medidas eficazes para o combate contra o racismo que são urgentes a tomar pelo Estado Português.
Que comunidades continuam a ser as maiores vítimas de discriminação racial?
As comunidades ciganas e negras são as mais afectadas pela ciganofobia e pela negrofobia estruturais na sociedade e nas instituições. Os casos mais recentes e reveladores disso são no caso da comunidade cigana, os recentes ataques e ameaças ocorridos em Santo Aleixo da Restauração e, quanto à comunidade negra, o mais significativo dos últimos tempo foi a agressão e a tortura dos activistas da Moinho da Juventude e da Plataforma Gueto, na Esquadra de Alfragide em fevereiro de 2015.
“Crescimento da islamofobia”
“Os ciganos são a comunidade mais discriminada em toda a Europa”, denunciou o comissário europeu dos Direitos Humanos, apontando que são “convenientes bodes expiatórios” e criticando que o tema tenha saído das agendas políticas. Concorda?
Sim, a ciganofobia é estrutural e transversal a todos quadrantes políticos ocidentais. Daí a passividade e a indiferença das opiniões públicas face à sua manifestação, mas sobretudo à subalternização do debate em torno do racismo ciganofobo. Porém, convém estar muito alerta sobre o crescimento cada vez maior da islamofobia, de que se alimenta o crescimento da extrema-direita que conseguiu empurrar os partidos do “mainstream” para uma retórica de ostracização dos muçulmanos.
Quais são então algumas das propostas concretas que o SOS defende como urgentes?
Corrigir algumas das fórmulas usadas nos números 1 e 2 do artigo 240º e
“As comunidades ciganas e negras são as mais afectadas pela ciganofobia e pela negrofobia estruturais na sociedade e nas instituições”
desenvolver ou completar quer o artigo 240º, quer os artigos 180º e seguintes do Código Penal, implicando estas propostas a alteração, desde logo, do artigo 5º da proposta governamental de uma nova lei das «contraordenações» de discriminação; do seguinte modo:
No art. 240º: 1. 1. Retirar as palavras «raça» e «cor» na alínea a) do nº 1 e nas alíneas a), b) e c) do nº 2; 1. 2. Acrescentar os números 3 e 4, com esta redação: Quem cometer práticas discriminatórias graves, definidas e exemplificadas no número seguinte deste artigo, é punido com pena de prisão de três meses a cinco anos. Consideram-se práticas discriminatórias graves as ações ou omissões que, em razão da origem étnica, ascendência, território de origem, religião, género ou orientação sexual da vítima, violem o princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação, designadamente: a) A recusa de acesso a locais públicos ou abertos ao público; b) A recusa ou limitação de acesso aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou privados; c) A recusa ou limitação de acesso a estabelecimentos de educação ou ensino públicos ou privados; d) A recusa ou limitação ao acesso e exercício normal de uma atividade económica.
Assim como nos arts. 180º e seguintes, acrescentar o art. 182º-A, com esta redacção: Para os efeitos dos artigos anteriores, presume-se a existência de juízo ofensivo quando a difamação ou a injúria envolvam preconceitos ligados à origem étnica, à ascendência, ao território de origem, à religião, ao género ou à orientação sexual da vítima, em violação do princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação.