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Quinta-feira, Abril 18, 2024

Conceitos e Práticas

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Já neste jornal se discutiu um pouco o que se entende por Representação, por Estilo, partindo de um ou outro exemplo concreto, como no caso de Magritte, ou de Nadir Afonso.
Outros exemplos se poderiam escolher.

Estou a pensar num muito vulgarizado, o de Vanguarda.

O que são afinal, em cada momento e em cada circunstância, as Vanguardas, literárias, teatrais, musicais, artísticas em geral?

O que as distingue das práticas existentes que se propõem renegar, renovar ou pelo menos alterar de um modo bem profundo e bem marcante, a ponto de com elas se iniciar um novo período estilístico de criação?

A Vanguarda, na criação, define-se pela inovação do estilo, ou do conceito que lhe subjaz ou por algum outro pormenor que deva ser esclarecido?

Um pormenor que se prenda com a intenção, mais do que com o modelo? Será sempre e necessariamente Ideológica a arte de vanguarda? Utilitária? (como aconteceu em parte com o design do movimento Bauhaus)?

Quando o arquitecto Mies van der Rohe decide que não quer no Bauhaus de Berlin uma escola politizada, nem à esquerda nem à direita, pressupõe-se que a arte pode e deve ser livre de toda a ideologia (no sentido de sistema organizado que pode sobrepor-se, orientando-o, ao artista e sua criação)?

Pode um modelo de pura anarquia conduzir um artista e sua prática? Ou na arte, como diz Nadir Afonso tem de imperar a Ordem (que não é ideológica, é matemática e promove a harmonia).

Outro conceito, o de harmonia como ordem na criação.

E de que modo uma Vanguarda formatada por uma ideologia, seja ela qual fôr, consegue subsistir? Não passará de imediato a ser representante de um sistema, do sistema que se pretendia combater, inovando?

Como interpretar esta escultura de Umberto Boccioni, intitulada Formas Únicas de Continuidade no Espaço, datada de 1913, criada para corresponder às doutrinas expressas nos Manifestos Futuristas de Marinetti e outros, em que a novidade consistia em representar o movimento no espaço, a sua dinâmica, algo como a força veloz que tudo domina e tudo pode condicionar, como a pulsão profunda que nos anos de 1914-1918 conduzirá a Europa a uma guerra fraticida?

A distorção das formas corresponde ao que se imagina possa ser a distorção no espaço, mas também a distorção no social, no colectivo – o espaço em que se funda todo um imaginário de estruturas em profunda mutação.

Este é o modelo proposto do NOVO HOMEM para o qual Giacomo Balla, na mesma altura, tinha esboçado os modelos de um novo vestuário, criando a moda futurista masculina, de desenho amplo, permitindo o movimento, ombros largos, dando a sensação de uma dimensão extra de tamanho – o todo com um único propósito (incluído nos Manifestos) – o da cisão radical com os costumes, com as ideias (também da moda) e até mesmo com as regras da linguagem normal.

Por exemplo, para sublinhar que tudo teria de ser movimento, evitar adjectivos e advérbios, na criação literária, produzindo verbos em série; ou, como dizia Marinetti, destruir a sintaxe, usar as palavras “em liberdade… tal como nasceram”; ou ainda, despir a prosa da pontuação que a obrigaria a ser lida de certo ritmo e não outro (não foi José Saramago o primeiro, nem de longe, a praticar tal vanguardismo).

De repente as palavras, tornadas movimento, irão servir uma falsa imagem de liberdade e não a ideia, o conceito que a suporta e fundamenta.

Foi assim mesmo que a liberdade, sua ideia e sua prática, acabou por se perder.

A Europa assistiu à ascensão de várias formas de totalitarismo, algumas das quais se prolongaram por muitos e muitos anos, como nos contos de horror.

Mas será legítimo concluir que à distorção da forma corresponde necessariamente uma distorção do conteúdo (entenda-se do valor, dos valores)?

Ficam muitas perguntas, para poucas respostas.

No apogeu do Barroco, duas representações foram escolhidas por Jean Rousset para definir o movimento tal como se manifestava na pintura e na escultura: Circe e o Pavão. A saber, a transformação, a metamorfose (Circe) e a ostentação, a exuberância da forma (o pavão).

No caso destas vanguardas do século XX assistimos à fulguração de Circe – o movimento – mas no tocante à forma o que se propõe é, segundo os casos, ou a simplificação extrema, sendo o simples o perfeito, ou a sua desestruturação, como que antecipando o caos que em breve se viveria..

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