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Quinta-feira, Março 28, 2024

Flexibilização do trabalho é ruim para todos e perversa para mulheres

Para a economista Lygia Sabbag Fares, professora da Escola Superior de Administração e Gestão Strong, certificada pela FGV, a realidade é bem diferente do querem fazer crer os entusiastas da flexibilização.

O discurso em defesa da flexibilização do trabalho, inclusive da jornada, com banco de horas, tempo parcial, trabalho aos fins de semana, turnos de revezamento, entre outras medidas, costuma alardear as vantagens para os trabalhadores. Em especial para os que precisam conciliar as horas trabalhadas com funções domésticas, caso, em geral, das mulheres. Essa argumentação ganhou um reforço extra nesses tempos de pandemia da covid-19, com a disseminação do teletrabalho e uma suposta divisão mais igualitária das tarefas domésticas entre homens e mulheres.

Para a economista Lygia Sabbag Fares, professora da Escola Superior de Administração e Gestão Strong, certificada da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutora em Desenvolvimento Econômico e especialista em Economia do Trabalho pela Unicamp, além de mestre em Labour Policies and Globalisation pela Universidade de Kassel e Escola de Economia e Direito de Berlim (Alemanha), a realidade é bem diferente do querem fazer crer os entusiastas da flexibilização. Segundo seus estudos, esses processos, “são impulsionados pelo capital, com o objetivo de obtenção de lucros e externalizar custos, seguindo o modelo capitalista de produção sob a égide do neoliberalismo”. O resultado é uma forte precarização do trabalho, ou uma pressão ainda maior no caso das funções mais competitivas, e em ambas as situações as mulheres são as maiores prejudicadas.

Nada garante, também, segundo ela, que no pós-pandemia os casais sigam dividindo mais os afazeres com a casa e os filhos. O saldo desse período tem sido mais negativo que positivo, com o aumento da violência doméstica e casos de divórcio.

 

Entrevista com a professora Lygia Sabbag Fares

Leia, a seguir, a entrevista com a professora brasileira, que acaba de receber um convite para lecionar no Brooklyn Institute for Social Research, nos Estados Unidos:

Em um artigo publicado em março (em coautoria com Gustavo Vieira da Silva), você alertava para o risco de aumento da violência doméstica durante o período da quarentena em decorrência da pandemia de covid-19. De lá para cá, aumentou a violência doméstica no Brasil? É possível também citar dados de aumento no número de separações e divórcios?

Mesmo com a dificuldade de mensurar os casos e sua possível subnotificação devido à pandemia, é possível afirmar que a violência contra mulheres e meninas aumentou no período do isolamento social. Em abril, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 cresceu quase 40% em relação ao mesmo mês de 2019, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH) enquanto, segundo o fórum de segurança pública, os casos de feminicídio aumentaram 22% em 12 estados no mesmo período. A falta de dados mais recentes pode ser explicada pela pandemia, pela defasagem esperada entre a coleta, produção e divulgação deles, mas também chama atenção que ao buscar informações oficiais no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não foram encontrados dados relevantes.

Segundo dados do Jus. Brasil houve um aumento de 177% na procura por escritórios especializados em Direito de Família e divórcios, comparado com o mesmo período do ano passado. Devido ao isolamento social, a tensão do trabalho remoto ou do desemprego, a convivência pode ficar mais difícil. Porém, é importante ressaltar que essas dificuldades apenas se transformam em violência pelo machismo, que infelizmente é abertamente respaldado pelo presidente, seus ministros e assessores.

O que o governo federal tem feito para enfrentar a questão? Ou, ao contrário, ela é invisibilizada e há desmobilização dos poucos instrumentos existentes de combate à violência contra a mulher?

Um artigo, ainda em fase de revisão, que escrevi com outras coautoras intitulado “Gendered impacts of COVID-19 in Brazil: a preliminary assessment”, trata um pouco dessa questão. No nosso entender, o governo federal não faz sequer o que se chama de Gender mainstreaming, que é um conceito definido pelas Nações Unidas nos anos 1990 que prevê a institucionalização e integração de normas e políticas de igualdade de gênero em países e organizações internacionais. Argumentamos que nos anos 2000, o Brasil caminhou no sentido da construção de um arcabouço institucional e legal positivo de promoção de políticas de equidade de gênero com a criação da Secretaria Nacional de Política para Mulheres com status de ministério em 2003, a implementação do programa pró-equidade de gênero e raça em 2005, a promulgação da Lei Maria da Penha em 2006 e com a criação da Secretaria Municipal de Política para Mulheres da cidade de São Paulo em 2013, da qual eu tive a honra de atuar como diretora de alternativa de renda, entre outros exemplos.

No entanto, a partir de 2015 há um desmonte, esvaziamento e até inversão dessas instituições que se explicita nas falas misóginas do presidente, na redução do status de ministério inicialmente e principalmente com a entrega da pasta à atual ministra Damares Regina Alves e sua condução abertamente antifeminista, em todos os aspectos caros ao movimento feminista e na eliminação da Secretaria Municipal de Política para Mulheres da cidade de São Paulo, apenas para citar alguns exemplos. Nesse sentido, acredito que infelizmente é possível afirmar que há uma desmobilização tanto no discurso quanto na prática das conquistas do período anterior no que tange à igualdade de gênero e raça, o direito das mulheres e aos instrumentos de combate à violência contra as mulheres e as meninas.

O que o episódio da reação de grupos fundamentalistas ao direito de uma menina de dez anos ao aborto legal mostra sobre a situação atual do país quanto aos direitos das mulheres e das crianças e adolescentes? Estamos assistindo a um retrocesso institucional ou apenas ao “empoderamento” de vozes reacionárias?

Com base nesse caso específico, dado que a menina conseguiu realizar o procedimento, acredito que por mais fragilizadas que estejam nossas instituições, elas ainda cumprem, como cumpriram, um papel fundamental em manter, ainda que minimamente, alguns direitos em nosso país. No entanto, entendo que o “empoderamento” de vozes reacionárias, como, por exemplo, a afronta criminosa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pela ativista Sara Winter, ao expor publicamente a identidade da menina e convocar protestos em frente ao hospital, tem efeitos perversos na cultura, na opinião geral, e pode vir a ter efeitos institucionais no futuro. A composição histórica do congresso nacional (homens, brancos, heterossexuais, representantes de uma elite conservadora) é nesse momento ainda mais preocupante, com o aumento do peso das bancadas armamentista, ruralista e evangélica. Pensar que é esse congresso que define leis, legitimado por essas vozes reacionárias me preocupa bastante.

Além da afirmação de uma pauta conservadora nos costumes, assistimos hoje no Brasil ao desmonte de direitos trabalhistas consolidados por décadas. Muitos defendem a flexibilização trabalhista, afirmando, por exemplo, que ela permite um arranjo mais adequado do tempo entre trabalho, cuidado das crianças etc. Mas os seus estudos mostram que é justamente a mulher a mais prejudicada com essa flexibilização. Por que isso ocorre?

Conforme discuto na minha tese, a flexibilização da jornada de trabalho no Brasil é um fenômeno observado desde os anos 1990. Apesar do discurso que a flexibilização permitiria a conciliação do trabalho produtivo e reprodutivo, no estudo busco demonstrar que os processos de flexibilização do trabalho, incluída a jornada, são impulsionados pelo capital, com o objetivo de obtenção de lucros e externalizar custos, seguindo o modelo capitalista de produção sob a égide do neoliberalismo. As formas mais recorrentes de flexibilização da jornada são o banco de horas, o trabalho aos finais de semana, em turnos de revezamento e trabalho a tempo parcial. O impacto desses arranjos é negativo para os trabalhadores em geral e seus impactos nas mulheres é ainda mais perverso.

Analisando a inserção das mulheres no mercado de trabalho, foi possível observar que, de um lado, os empregos nos quais as jornadas são flexíveis ou reduzidas e permitem que elas permaneçam no papel de cuidadoras do lar são precários e mal remunerados. De outro lado, os trabalhos melhor remunerados demandam jornadas longas e antissociais, incompatíveis com os cuidados da casa e da família. Ou seja, os trabalhos que “oferecem” certa flexibilidade de jornada, considerando as mulheres como “responsáveis” pelo trabalho produtivo, geralmente são postos de trabalho que oferecem menor renda e prestígio social. Por outro lado, os empregos em ramos mais competitivos, historicamente masculinos, abrem espaço para as mulheres, porém não levam em conta o trabalho reprodutivo e sua não-divisão sexual, assim as mulheres que se inserem nesses ramos sofrem uma pressão ainda maior.

Há quem veja com certo otimismo o mundo pós-pandemia, acreditando que algumas lições serão aprendidas e poderão levar a mudanças de comportamento. Por exemplo: homens forçados a ficar em casa passaram a contribuir mais nas tarefas domésticas e a se relacionar mais com os filhos. Que observações você faz sobre isso? Há de fato uma mudança em curso?

Estou desenvolvendo um estudo sobre isso, e as minhas percepções preliminares apontam que não é possível generalizar uma maior participação masculina nos trabalhos domésticos e de cuidados. Em alguns casos se observa uma maior participação dos homens, exatamente por passarem mais tempo em casa, gerando uma melhor divisão sexual do trabalho, porém há muitos relatos de mulheres que tiveram uma sobrecarga ainda maior no período da pandemia. Além disso, uma vez que o trabalho presencial retorne, é possível que haja um retrocesso, mesmo nas famílias que passaram a distribuir melhor o trabalho de cuidados, já que esta questão aparentemente doméstica e pessoal é estrutural.

Se espera dos homens (e cada vez mais das mulheres também) disponibilidade total no trabalho. Além disso, os custos da reprodução da força de trabalho que antes recaíam somente nas mulheres, passam também a incidir em uma parcela dos homens. Neste cenário, ambos, homens e mulheres sofrem pressão para oferecer flexibilidade no trabalho e, assim, é importante considerar que o capital externaliza os custos do trabalho produtivo com a jornada flexível e continua a externalizar os custos de reprodução da força de trabalho, talvez de maneira um pouco menos desigual entre alguns casais, porém se beneficiando deste trabalho feito de forma gratuita e transferindo o fardo para as famílias.

Entre as razões que levaram o Bolsa Família a ser um programa reconhecido no mundo todo está o fato de que ele dá autonomia e um certo poder às mulheres, que são as titulares dos cartões, além de ajudar a reduzir a mortalidade infantil e materna. Ou seja, é um programa de renda básica que melhorou a vida das mulheres. Em sua opinião, quais são os riscos para as mulheres de um programa de renda básica como o que vem sendo prometido pelo governo Bolsonaro, que não leva em consideração as questões de gênero?

Quando eu estive como diretora de geração de renda na Secretaria Municipal de Política para Mulheres da cidade de São Paulo, trabalhei em programas de economia solidária nos equipamentos da prefeitura. Desses programas de geração de renda participavam mulheres de baixa renda, muitas delas vítimas de violência doméstica. Ouvi muitas vezes relatos da importância do programa Bolsa Família como uma renda mínima que ao proporcionar autonomia econômica permitia a essas mulheres deixarem relacionamentos abusivos, fugirem de casa. Uma delas disse “Agora meu marido é o Lula, e eu não apanho mais”. Acredito que programas focalizados de transferência de renda têm, como o nome diz, que ser focalizados para as pessoas mais vulneráveis. Em nossa sociedade, os dados apontam que as mulheres e negras são as mais vulneráveis. Tirar dessas mulheres esta mínima autonomia seria um grande retrocesso.

Você tem uma proposta para lecionar em uma instituição de ensino norte-americana. Gostaria que comentasse como é, nos dias atuais, em que estamos sob um governo de extrema-direita, dedicar-se a um tema como o da economia do trabalho e questões de gênero? Para continuar se aprofundando nessa linha de estudos é mais prudente sair do país?

No artigo “A Feminist Perspective on the 2017 Labor Reform in Brazil: Impacts on Higher Education Faculty’ escrito pela Dra Ana Luíza Matos de Oliveira e por mim, para um livro chamado “Female Voices from the Worksite” que será publicado pela Lexington Books até 2021, discutimos as consequências da reforma trabalhista para os professores universitários. Os desafios da carreira acadêmica no Brasil são muitos e, como apontamos no artigo, as condições de trabalho a partir dos anos 1990 têm sido bastante precarizadas no ensino público e sobretudo no privado.

A reforma trabalhista tem o potencial de contribuir negativamente, agravando a situação de contratação como horista ou pessoa jurídica, baixa hora-aula, gerando mais incerteza e precarização do trabalho. Ademais, a falta de oportunidades em concursos públicos, dados os cortes de verbas e ataques às universidades públicas promovidas por esse governo, oportunidades essas que para professores no Brasil são praticamente a única forma de se poder atuar na tríade ensino, pesquisa e extensão agrava a situação de recém doutores e professores em início de carreira.

Pessoalmente, dadas as condições do mercado de trabalho para professores universitários no Brasil, eu considero que tive uma boa oportunidade de lecionar em uma faculdade séria e comprometida com o ensino, mas sentia falta de poder me dedicar à pesquisa e extensão. Meus campos de estudos economia do trabalho e principalmente gênero são áreas pouco valorizadas no ensino e pesquisa tradicionais em economia, nesse sentido, parece haver mais oportunidades fora do Brasil. Desta forma, fico bastante honrada com a oportunidade em poder levar um pouco do que pude aprender com a excelente educação pública superior que obtive no Brasil, especialmente no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) onde concluí meu doutorado, e com o grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento” do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) e contribuir modestamente para divulgar a riqueza do pensamento econômico e social brasileiro que aqui aprendi. Levo também a vontade de colaborar na construção de um Brasil mais justo, solidário e de mais oportunidades para todas e todos.


por Paula Quental    |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV (Brasil Debate) / Tornado

 

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