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Domingo, Outubro 6, 2024

O Felpudo

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

O Felpudo é um grande gato persa, sedoso e vaidoso, ciumento de todos os cuidados que a dona não lhe ofereça a ele.

As orelhitas parecem conchas redondas do mar. O nariz sempre atento aos odores, sobretudo aos que chegam da cozinha, é curto e parece uma bolinha de pão colocada entre os lindos olhos azuis, redondos, brilhantes como berlindes, que lhe dão uma uma expressão inteligente.

É forte, o peito largo de atleta musculado,mas pachorrento. As grandes patinhas preguiçosas sempre prontas a uma boa espreguiçadela.

Na cabecinha redonda recebe as melhores carícias da dona, a Margarida.

Foi ela quem lhe ofereceu um lar, ela é quem o alimenta e embala nas horas de que o Felpudo é muito cioso. Um dia, era ele pouco mais que um novelo de pelo com olhos meio fechados, a dona Margarida, seu primeiro amor, levou-o para casa numa cestinha. Entre os dois estabeleceu-se uma amizade e confiança duradouras. Sem quebras de humor nem dias de má disposição. Com ela apreciou o primeiro leite que o fez crescer e engordar. Já lá vão uns anos, mas na memória do Felpudo ainda estão vivos os tempos em que descobriu como era divertido rebolar pelo tapete, enroscar-se na almofada, correr atrás de uma bolinha de borracha verde, e afiar as garras que lhe cresceram nas almofadinhas das quatro patas.

Ou seja, para este gato persa bem tratado a vida não tem sido madrasta.

De vez em quando vai até ao jardim da casa, fica estacado na relva a olhar para os pássaros esvoaçantes, mas como tem o seu prato de comida apetitosa sempre ali no cantinho da cozinha, nem se dá ao capricho de lhes correr atrás.

Enfim, com o andar dos anos, o Felpudo tornou-se quase num príncipe persa com uma corte onde reinar:a casa da dona Margarida.

Tem amuos. Por exemplo, se alguma amiga da dona se lembra de ir lá a casa beber um chá e dar dois dedos de conversa, o Felpudo incomodado, retira-se, ou melhor, esconde-se no grande cesto da roupa que espera para ser passada a ferro. Não adianta a Margarida chamar:

_ Anda cá Felpudo, anda dizer bom dia à dona Josefina, ela trouxe-te umas bolachinhas para trincares!

Qual quê, qual nada. O Felpudo faz orelhas moucas, fecha os olhos, ignora a conversa e acaba por adormecer nas dobras dos lençóis que cheiram a sol e alfazema.

Está a ficar velhote, mas o gato persa não sabe o que isso quer dizer. Sabe é que cada vez mais mais gosta de mimos e cada vez menos lhe interessam os pássaros.

Uma grande surpresa o espera.

A dona mandou abrir, limpar e arejar o sótão da casa, pois uma grossa trave do telhado parecia estar a dar sinais de algum caruncho. Felizmente verificou-se que a trave estava apenas um pouco fatigada e precisava de um suporte que a empertigasse. Mas a abertura do sótão fez sair de um buraquinho o idoso rato Mickey, que meteu o focinho de fora, os pelos do nariz a testarem esta nova corrente de ar. Os olhinhos brilhantes, como pérolas cinzentas de gravata, espreitaram. O Mickey, depois de estar um bom pedaço de tempo à escuta de barulhos que pudessem prenunciar desgraça, avançou, peito feito para a aventura da descoberta de um novo espaço.

Encontrou os degraus de uma escada e por ali foi correndo e escorregando muito animado. Chegado ao andar de baixo, sem prenúncio de tempestade, olhou em volta.

E entre feliz e assustado, viu aquela bela bola de pelo enroscada numa almofada. Foi-se aproximando, encantado com esta miragem fofa e encaracolada! Que belo ninho ia poder fazer num tal novelo almiscarado. Deu a volta completa em torno desta maravilhosa montanha de lã cardada. Foi aí que o Felpudo, sonolento, resolveu abrir os olhos, quais fendas a dirigirem-se para um Mickey muito satisfeito e nada desconfiado.

Um solene ronronar saiu da bola felpuda. A barriga parecia estar a despertar do sono dos justos e começou a animar-se com movimentos de respiração mais profunda.

O Mickey começou a perceber que aquela massa lanosa que pensara ser um ninho gigante e aconchegado, era um membro da sua espécie animal, um com quem nunca travara nem conhecimento, nem amizade, nem luta desenfreada. Sentiu-lhe o calor e a ternurenta tensão do corpo a acordar. O Mickey estava a apaixonar-se!

O Felpudo, que em novo já fora mais egoísta e zeloso do seu espaço, espreitou o engraçado ratinho que lhe tinha caído entra as duas patas da frente. Miou baixinho, como quem chama pelo vento.

Estava enfeitiçado. Recolheu, cuidadoso, as garras e passou a patinha carinhosa pelo corpinho do Mickey com tanto cuidado como aquele a que a Margarida, nos seus desvelos, o tinha habituado.

O Mickey deixou-se afagar. Até deslizou mais um bocadinho para ficar mesmo encostado àquele pelo tão aveludado. Amigos para sempre. Isso sim, era um milagre!

 

Felpudo no colo da Margarida


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90  | Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira



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