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Sexta-feira, Junho 27, 2025
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A captura do Ocidente pela teocracia iraniana

Dois jornais web, o Iran International, baseado em Londres, e o Semafor, baseado em Washington DC, publicaram o resultado de uma fuga de informação à correspondência electrónica de altos funcionários da diplomacia iraniana com uma rede de agentes iranianos colocada no Governo e em grupos de reflexão ocidentais, com frequente presença na imprensa institucional ocidental, que eles denominaram de ‘Iniciativa de Peritos Iranianos’.

A rede foi constituída a partir de 2014 por pessoas de origem iraniana, e foi decisiva para a conclusão do acordo nuclear entre o Irão e o chamado grupo P5+1, onde se incluem os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) mais a Alemanha.

Robert Malley, designado por Biden como ‘enviado especial para o Irão’ e que tinha sido já um elemento chave da Administração Obama nas negociações nucleares com o Irão, foi o responsável pela penetração da diplomacia e da defesa americana de três dos membros do grupo. Foi recentemente despedido depois de se tornar pública a sua ligação ao regime iraniano.

A penetração dos agentes do regime iraniano nas esferas onde se produz a opinião institucional europeia é também clara, embora não tenham sido expostos casos da sua contratação para áreas tão sensíveis do executivo, como aconteceu nos EUA.

A título de exemplo, o ‘grupo de reflexão’ institucional do Parlamento Europeu contratou um desses agentes iranianos para promover o acordo nuclear com o Irão. O principal agente iraniano na Alemanha aparece frequentemente lado a lado da actual responsável da diplomacia, sendo que o seu grupo de reflexão é financiado pelo erário público alemão.

Em suma, aquilo que a imprensa institucional europeia, os mais reputados grupos de reflexão, e mesmo funcionários governamentais, apresentam como análises e subsequentes propostas políticas a ser seguidas pelo Ocidente em relação ao Irão, são feitos pelas autoridades iranianas que assim capturaram os mecanismos de decisão ocidentais.

Não é por isso de estranhar que o Ocidente faça aquilo que o Irão deseja, por que o Irão se instalou nos mecanismos de poder para que isso assim aconteça. É um claro exemplo de captura do poder.

Posto isto, a exposição deste sistema de captura levanta várias questões que são mais difíceis de responder.

Em primeiro lugar, as comunicações agora expostas utilizam sistemas de correio electrónico que são regularmente fiscalizadas pelas agências oficiais de informação norte-americanas. Por que razão estas não deram conta antes do problema e por que razão as autoridades iranianas não tomaram as devidas providências para evitar que as suas comunicações fossem tornadas públicas?

A este propósito é deveras curioso que as primeiras informações sobre o escândalo em desenvolvimento viessem do ‘Tehran Times’ organismo da imprensa oficial do regime iraniano, e que, os chamados ‘reformistas’ – esta rede foi constituída pelo anterior Presidente iraniano, Hassan Rouhani em nome desta facção do regime – acusem implicitamente a facção rival no poder de ser a verdadeira fonte desta fuga de informação.

Não seria a primeira vez que algo deste género teria lugar. O primeiro e mais monumental escândalo de cooperação irano-americana, pelo qual o regime iraniano apenas libertou os diplomatas americanos reféns no dia da investidura de Ronald Reagan, foi publicitado por Gary Sick, responsável americano na equipa Carter, cofundador da ‘Human Rights Watch’, e um dos mais importantes lobistas iranianos nos EUA, na altura ligado à facção iraniana contrária à que fez o acordo com a equipa de Reagan.

Ou seja, a guerra entre facções no Irão é de tal forma intensa e a facilidade com que essas facções organizam operações de captura de poder no Ocidente é tão grande, que ambas as facções estarão dispostas a recorrer à denúncia da facção rival junto do Ocidente para lutarem contra ela.

A segunda e mais importante questão é a de entender a razão pela qual é tão fácil capturar os mecanismos de decisão ocidentais. À partida, há três razões que facilitam essa captura.

A primeira é a do funcionamento em circuito fechado das elites ocidentais. A partir do momento em que se entra no circuito por via da imprensa institucional, dos negócios, dos círculos da moda ou do poder político, torna-se fácil transitar de um lado para o outro. A facilidade com que estes agentes iranianos agora identificados se movimentaram entre estas instituições corrobora a importância desse factor.

Em segundo lugar, o espírito de apaziguamento, que leva as elites a favorecer as soluções milagrosas, sem conflito, às que pressupõem o confronto. Um Irão seduzido pela paz é uma figura mais apetecível do que a de um regime apostado em desfazer o Ocidente. Como apêndice deste espírito de apaziguamento há a ignorância que ajuda a não ver o que estraga os cenários idílicos.

Aqui, há a assinalar que isso nem sempre é assim, e que por vezes, a captura se faz pelo fenómeno contrário, o do belicismo, e foi isso que aconteceu com a invasão do Iraque de 2003. Aqui o belicismo apareceu como forma de obter a desforra do 11 de setembro, apesar de o Iraque nada ter tido a ver com esse atentado e, pelo contrário, ter sido o principal instigador da invasão do Iraque, o regime iraniano, um dos principais implicados nesse atentado.

Em terceiro lugar, o dinheiro, sem o qual tudo o resto é mais difícil ou quase impossível. Por vezes, a ideologia torna-se tão ou mais importante do que o dinheiro, mas se é verdade que o sonho comunista terá sido quiçá a mais importante das molas de captura usada pela União Soviética, a atracção pelo fanatismo islâmico nas elites ocidentais, sendo por vezes real, é muito menor.

Esta é a área menos explorada, mas provavelmente a que é mais vital para defender o Ocidente dos seus inimigos. Na mesma altura em que se catapultou este grupo para, em lugares chave das instituições ocidentais, papaguear o discurso do clero iraniano, montou-se uma impressionante máquina financeira para impulsionar esse grupo.

Por que razão um conjunto de instituições americanas supostamente caritativas se uniram para financiar o acordo iraniano? Porque essas instituições agem pelas mesmas razões que o resto da sociedade, incluído por razões financeiras. Instituições como as ‘Fundações Sociedade Aberta’ – que contrariamente ao que fazem crer, não são uma entidade legalmente registada – são apenas capas de fundos de investimentos registados nas ilhas Caimão.

Estou em crer que saber onde e como se investem esses milhares de milhões de dólares que alimentam toda a máquina de infiltração e conquista das instituições ocidentais é a melhor forma de deslindar o puzzle dessa captura.

Confrontos no campo da mobilidade eléctrica

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Na sequela de um Salão Automóvel de Munique onde primaram os construtores do Império do Meio, numa conjuntura em que a indústria europeia parece cada vez mais posta em causa e em que os carros já não serão vistos como o melhor meio de transporte, surgiu a notícia que a Comissão Europeia vai abrir investigação sobre subvenções para carros elétricos chineses.

É verdade que os construtores chineses parecem cada vez mais apostados em vingar na velha Europa, mas a afirmação de Ursula von der Leyen de que os carros chineses serão baratos e artificialmente suportados graças a gigantescas subvenções estatais parece mais ditada por mero despeito ou puro exagero neoliberal que por ponderadas e bem fundamentadas razões. Isto tanto se deduz da explicação oferecida pelo próprio fabricante para a diferença de preço do VW ID3 na China e na Europa, que salienta a diferença nos custos de produção (mão-de-obra e energia mais baratas na China), nos custos de contexto (a proximidade com os fornecedores de componentes onde são especialmente relevantes as baterias produzidas localmente) e o menor nível de acabamentos e equipamento, como das conclusões de um recente estudo do banco UBS assegurando que os carros eléctricos chineses continuariam a ser mais baratos, mesmo se fabricados na Europa.

É claro que haverão múltiplas formas de apoio do governo chinês à sua indústria automóvel, muitas das quais existirão também na Europa e noutras latitudes, mas o que parece inegável para o cidadão europeu comum é que talvez os construtores chineses se mostrem mais disponíveis a reflecti-las no preço final dos seus produtos enquanto os construtores europeus optam claramente por transferi-las maioritariamente para os rendimentos dos seus accionistas. E esta hipocrisia é ainda mais gritante quando se constata que boa parte das viaturas eléctricas dos fabricantes europeus são na realidade produzidas na China – como é o caso da BMW, Citroën, DS, Dacia, Polestar, Tesla e Volvo, a que se juntarão em breve a Cupra e a Audi – onde beneficiam da mesma mão-de-obra e energia baratas que os seus concorrentes chineses.

A reacção da Comissão Europeia parece dever-se mais ao facto do preço atractivo dos carros elétricos das marcas chinesas estar a impulsionar as suas vendas no Velho Continente, começando a ameaçar os fabricantes europeus que continuam a apostar mais na sofisticação e na fixação de preços elevados, do que a verdadeiras preocupações de equidade industrial ou comercial.

A par disto, verificou-se uma mudança de grande significado em 2022, ano em que a China passou da situação de importadora para a de exportadora de automóveis. Afirmando-se como uma potência da indústria automóvel (a quota de mercado em valor das marcas estrangeiras caiu assim de 60% em 2019 para 40% em 2022) que concorre com os europeus no seu próprio território, deixou de ser a mina de ouro que foi para os fabricantes europeus, sobretudo os alemães, que com os seus modelos de luxo tem aproveitado ao máximo a ascensão de uma nova classe rica chinesa.

As exportações chinesas têm estado maioritariamente orientadas para o espaço europeu, especialmente as de veículos eléctricos cujas vendas já atingem os dois dígitos, numa conjuntura onde grassa a inflação e num mercado que ainda não recuperou da quebra nas vendas originada pela covid-19. O recente salão de Munique marcou à evidência que o futuro concorrente dos grandes fabricantes europeus (Volkswagen, Renault ou Fiat/Peugeot) deixou de ser a norte-americana Tesla (que também monta os seus carros na China), para passarem a ser os construtores do Império do Meio, assim abalando o futuro da indústria automóvel no Velho Continente e a sua capacidade de definir normas, sem contar, claro, os mais de dois milhões de empregos que dela dependem directamente.

As marcas chinesas ainda ocupam um lugar muito secundário na Europa e no pouco significativo mercado português, mas as tendências actuais mostram um forte aumento. Segundo dados da ACAP (Associação Automóvel de Portugal) as marcas que registaram maiores crescimentos nas vendas de viaturas 100% eléctricas em 2023, no nosso país, foram a Polestar (marca premium da Volvo, fabricante de origem sueca que é detido pelo grupo chinês Geely) e a MG (marca originalmente inglesa que agora é propriedade do grupo chinês SAIC).

Face à anunciada proibição de venda de novas viaturas com motores de combustão interna na UE a partir de 2035, a percentagem de viaturas eléctricas nas vendas de automóveis deverá continuar a crescer e os construtores chineses podem vir a ser os principais beneficiários, uma vez que a sua oferta se revela cada vez mais competitiva, graças a preços inferiores (8.000€ a 10.000€, em média e para gamas comparáveis), aos seus avanços nesta tecnologia e às economias de escala potenciadas pela dimensão do seu mercado interno e pelo avanço no investimento e no desenvolvimento. E isto é particularmente perceptível quando vemos que actualmente, no mercado europeu, a aquisição de um veículo eléctrico europeu ronda os 55.000€, poucos se localizam abaixo dos 30.000€ e nenhum abaixo dos 20.000€, enquanto que um terço da oferta chinesa no seu mercado, é composta por modelos que custam menos de 20.000€, e até menos de 15.000€.

 

Confrontos no campo da mobilidade eléctrica | Parte II

Quando Natália Correia escreveu sobre a greve académica de 1907

Comemorando-se este ano o centenário do nascimento de Natália Correia chamou-me a atenção, quando recebi uma circular alusiva de um alfarrabista, a publicação A Questão Académica de 1907, que prontamente encomendei, e que se encontra classificada como ensaio no texto que a Wikipedia dedica à autora.

Essencialmente descritivo, o texto, alimentado por transcrições auxiliadas por notas de rodapé, de sucessivas deliberações, artigos de opinião publicados, e relatos de intervenções parlamentares, é de fácil leitura:

Reprovação por unanimidade em 1907 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra(i) em provas para o grau de doutor de José Eugénio Dias Ferreira (já anteriormente aprovado como licenciado)(ii) por um júri que incluía o Reitor e que terá premeditado a reprovação, manifestação dos estudantes até casa do reprovado, greve às aulas de Direito recebendo-se os lentes com pateada com perda de ano por parte de muitos estudantes já “tapados”, exigência de criação de Faculdades de Direito em Lisboa e no Porto, exigência de sindicância ao acto de onde resultara a reprovação, marcando-se novas provas, decreto de encerramento da Universidade até o Conselho de Decanos, ao abrigo do Foro Académico, se pronunciar sobre a autoria dos supostos desacatos, vinda de 400 estudantes a Lisboa, realização de greves de solidariedade em outras escolas superiores, debates na Câmara dos Deputados e na Câmara dos Pares em que o Partido Republicano sustenta não estar na origem da contestação, entrada da polícia na Universidade, pedido de demissão do Professor Bernardino Machado, em protesto, expulsão de 7 estudantes em resultado da deliberação do Conselho de Decanos, recusa da generalidade dos outros estudantes em requerer exames se os 7 não fossem reintegrados, mobilização, das famílias para obter uma composição do litígio, que não impede que um conjunto de estudantes (os intransigentes que segundo este livro terão sido 107) de deixar queimar todas as datas sucessivamente fixadas para requerer exames, e finalmente, com envolvimento do Rei D. Carlos comutação das expulsões e adopção de medidas que permitiam que nenhum dos estudantes viesse a perder o ano.

Nunca vi qualquer referência à génese deste livro de Natália Correia, a qual não terá feito outras incursões no domínio da História. Mas a data de publicação – 1962 – ano em que outra “crise académica” ganha força, e a circunstância de se tratar de uma edição conjunta da Seara Nova e da Editorial Minotauro, esta última liderada por um açoriano como Natália Correia – Bruno da Ponte (que veria a sua Editorial encerrada definitivamente em Dezembro de 1966 por ter editado um volume com implicações prejudiciais para a defesa nacional(iii)) – e de vir incluído na edição um prefácio de Mário Braga, escritor, jornalista e sobretudo tradutor, na altura editor da Vértice, levam-me a interrogar-me se a corajosa antifascista Natália Correia não terá aqui assumido a autoria de um trabalho na origem colectivo. Talvez a questão já tenha sido debatida noutros lugares, mas não encontrei referências.

A greve académica de 1907 já eu a tinha seguido na excelente biografia de Jorge Pais de Sousa Bissaya Barreto: Ordem e Progresso originalmente publicada em 1999 de que dei conta aqui em o Partido do Centro, sendo então Fernando Bissaia Barreto, posteriormente deputado constituinte da corrente de António José de Almeida, entretanto ligado pessoalmente com Salazar, dirigente da União Liberal Republicana de Cunha Leal, dirigente na União Nacional de Salazar, um intransigente que não renega o seu passado e que ainda em 1961 evocou que nessa altura cumprira os seus compromissos.

O leitor que queira procurar na Internet referências à greve académica de 1907 encontrará um bom texto na Wikipedia que, note-se, não inclui na Bibliografia a publicação de Natália Correia, bem como textos de outros autores, entre os quais um artigo bem estruturado de Maria Neves Leal Gonçalves na Revista Lusófona de Educação.

Outro livro que muita nos conta sobre a greve, seus antecedentes e evoluções posteriores, é de Alberto Xavier, um dos 7 expulsos de 1907 cuja síntese biográfica na Wikipedia nos leva a crer tratar-se de mais um estudante radical que veio a acabar como colaborador de Salazar.

A transição da República para o Estado Novo, não diminuiu a sua intervenção junto do Poder, visto que se tornou um dos colaboradores de António de Oliveira Salazar, quando este geriu a pasta do Ministério das Finanças.”

Por José Artur Leitão Bárcia – Arquivo Municipal de Lisboa, Domínio público

Não será bem assim e o seu livro “História da Greve Académica de 1907”, aprofunda acontecimentos anteriores e posteriores a 1907, numa crítica bastante dura, quanto a estes últimos, da actuação do chefe do Governo, João Franco, e até da do rei D. Carlos. Alberto Xavier, que se dá por muito pouco politizado no início da contestação, veio a tomar conhecimento de que a lista de estudantes a punir havia sido definida por João Franco e transmitida à Universidade, e faz as melhores referências como professores a Marnoco e Sousa que teve de actuar como promotor, e a José Alberto dos Reis(iv). É durante o conflito que João Franco passa pela segunda vez a governar em ditadura, com o apoio de D. Carlos, e em termos gerais se envolve numa escalada repressiva a que o regicídio põe fim(v). Alberto Xavier também considera que D. Carlos apoiou João Franco porque queria governar através dele.

Tendo tido a experiência de ser um dos 7 expulsos, Alberto Xavier vinca a sua gratidão aos 160 intransigentes, refere os percursos profissionais e políticos de muitos dos seus colegas, incluindo Alberto Pimenta e o futuramente auto designado “fascista” Trindade Coelho, mas destacando entre todos Aureliano de Mira Fernandes cuja fotografia insere em lugar de destaque no livro e que, refere, nunca se envolveu em actividades políticas. Um verdadeiro retrato de uma geração. De si próprio destaca este reconstituinte sobretudo a admiração por Álvaro de Castro do qual foi chefe de gabinete quando este chefiou o Governo em 1924. Falecido Álvaro de Castro em 1928, parece lógico que Salazar – um admirador de João Franco – o tenha aproveitado nas Finanças e como Juiz do Tribunal de Contas.

Curioso é que tenha sido o crítico ano de 1962 a assistir à publicação deste elogio do sobressalto estudantil de 1907, num livro invulgar, através da Coimbra Editora, a editora de Salazar.

Os estudantes de Coimbra não conseguiram a reivindicada criação das novas Faculdades de Lisboa e do Porto: a primeira, criada pela República, seria extinta pela Ditadura Nacional em 1928, antes de Salazar entrar para o Governo, e restabelecida meses depois com a assinatura deste, num dos compromissos que foram viabilizando a convergência das forças que vieram a aceitar o Estado Novo. Recordo a clarificação que fiz a propósito deste episódio: 1928: quando Salazar (não) extinguiu a Faculdade de Direito de Lisboa. Quanto à Faculdade de Direito da Universidade do Porto viria a ser criada muito tardiamente, já em democracia. As provas não foram mandadas repetir, o candidato reprovado submeter-se-ia a novas provas anos depois e foi aprovado.

Pelo caminho ficou um Reitor, e acabaram por ficar uma “ditadura comissarial” e o rei que a tinha viabilizado. A Monarquia cairia dois anos depois, numa insurreição armada.

O mundo político e académico era na altura pequenino. Um filho de João Franco foi um dos estudantes grevistas. O candidato reprovado, José Eugénio Dias Ferreira, era filho de um antigo chefe do Governo, José Dias Ferreira, que havia tomado também algumas medidas autoritários(vi). Depois do seu doutoramento viria a ser Professor do Instituto Superior do Comércio e depois do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. A economista emérita Manuela Ferreira Leite, que ficou com a fama de querer suspender a democracia por seis meses (mas não exprimiu tal desejo) é sua neta e bisneta do primeiro.

Hoje em dia tudo está bem, a Universidade de Coimbra já não reprova candidatos a doutores por unanimidade e os estudantes não têm de ter receio da polícia. Certo ou errado?

Errado!

Há alguns anos uma candidata a doutora em História de Arte, licenciada tanto em Engenharia Civil como em Arquitectura e com mestrado em História de Arte foi reprovada por unanimidade por um júri incluindo professores de várias instituições e o seu próprio orientador. Todavia apresentara um trabalho muito bem construído, que tinha o defeito de pôr em questão opiniões já expendidas por alguns membros do júri.

Há alguns dias uma estudante que mudou de passeio para filmar uma concentração ligada à luta contra as alterações climáticas, foi detida pela PSP, levada a Tribunal pelo Ministério Público e condenada a pena de multa.

 

Notas

(i) Acedido em 30-9-2023.

(ii) Na altura o estudante de Direito “formava-se” para exercer profissionalmente como bacharel.

(iii) Teatro de Sttau Monteiro. Bruno da Ponte faleceria em Dezembro de 2018.

(iv) Contudo Alberto Xavier nunca perdoou a João Franco os termos em que apareceu referenciado no acórdão do Conselho de Decanos: “Ao arguido António Maria Eurico de Alberto Xavier eram assacadas as seguintes infracções; tomara parte nas manifestações, em especial naquela que visara o Dr. Pedro Martins, sendo também surpreendido ‘a fazer ruído com fortes assobios para o que metia os dedos na boca como é de uso em gente de baixa condição.’”.

(v) Ditadura na monarquia constitucional corresponde a uma situação em que o executivo passa, com o apoio do rei, a governar por decretos com força de lei prescindindo da convocação do parlamento, na expectativa de quecoi acabem por ser ratificados por este, eventualmente após eleições.

(vi) Filho natural, segundo se precisa num dos textos consultados, sendo a mãe uma Viscondessa Eugénia.

A esquerda e a pauta identitária

A pauta identitária tem um verniz de movimento social, mas, por dentro, seu modo de ação desorganiza a esquerda, rompendo com sua premissa: a luta por igualdade e justiça social.

Ao mesmo tempo em que esse discurso busca se sobrepor a instituições como partidos e sindicatos, colocando-se como “a nova esquerda” no lugar da “velha política”, por trás, ele aproveita a criação de nichos de mercado a partir das conquistas dessas próprias instituições (partidos e sindicatos). Ou seja, se hoje grupos historicamente oprimidos como mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, tem maior capacidade de consumo, isso é resultado de conquistas sindicais e de políticas públicas. O problema não é se tornar mercado consumidor. O problema é o livre mercado sequestrar causas ideológicas, castrando seu ímpeto união e de luta.

A ideia de que o fim da União Soviética representou também o fim da ação política de base classista está na base do discurso identitário. A “abundância” da produção capitalista teria contemplado a massa popular e, assim, dissolvido os ideais socialistas. Restaria para a esquerda dedicar-se à luta pela representatividade dos grupos oprimidos em espaços de poder.

Este argumento foi exposto sem rodeios no jornal Folha de São Paulo de 23/09/2023, em uma matéria que se propõe “explicar” o que é a esquerda. Segundo a Folha:

“Com a queda do Muro de Berlim e o fracasso do projeto da União Soviética a esquerda passou a incorporar cada vez mais bandeiras relativas aos direitos de grupos marginalizados. Inserem-se nesse contexto o feminismo e os movimentos antirracista e LGBTQIA+”.

O cientista político convidado pelo jornal para falar do assunto, Bruno Bolognesi, diz na matéria que: “De forma geral, a esquerda hoje não é mais uma esquerda de combate ao capitalismo, é por igualdade para os oprimidos’”. Ele diz mais: “Os valores mudaram porque o bloco socialista acabou como ideal histórico e também porque essas pessoas vivem em um mundo de maior abundância’”.

As afirmações do professor e a definição de esquerda da Folha estão alienadas da realidade. A abundância de produtos no mundo capitalista é muito mal distribuída. Além disso, no artigo é negligenciada a ascensão da China comunista nos últimos 40 anos.

O problema é ainda mais profundo. Nos anos que se seguiram ao fim da URSS, ideias como a de um mundo de liberdade e sem fronteiras ganharam força no Ocidente. A tese do fim da história, reeditada por Francis Fukuyama, segundo a qual a democracia capitalista seria o auge da civilização humana, marcou o espírito daquela época. A hegemonia liberal pós Guerra Fria também ficou impressa na sentença da primeira ministra do Reino Unido, Margareth Tatcher, que disse, em 1993: “Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”.

Mas “O fim da história” e o “mundo de indivíduos” eram dogmas que entravam em contradição com a nítida falência do capitalismo. A incapacidade de dar soluções para os problemas da pobreza e da desigualdade refletia-se na situação de pessoas vivendo nas ruas, no mais completo abandono e marginalidade.

Em “Era dos Extremos – O Breve Século XX” (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), Eric Hobsbawn descreve como a mendicância tornou-se parte da paisagem nas grandes cidades após o fim da Era de Ouro do capitalismo (1945 a 1973):

“Na década de 1980 muitos dos países mais ricos e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela polícia. Em qualquer noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da população da cidade que não tinha tido, num ou noutro momento dos últimos cinco anos, um teto sobre a cabeça. No Reino Unido (1989), 400 mil pessoas foram oficialmente classificadas como sem-teto. Quem, na década de 1950, ou mesmo no início da de 1970, teria esperado isso?”.

Quatro décadas depois, a situação se agravou. A crise de 2008 e a pandemia da Covid-19 escancararam a incapacidade do livre mercado em atender às demandas decorrentes da recessão, do desemprego, da falta de moradia e dos despejos em massa, da rápida disseminação do coronavírus e da explosão do número de mortes. O resultado não poderia ser diferente: aumento da pobreza, da desigualdade, da violência e da opressão sobre as chamadas minorias.

Ao mesmo tempo, a precarização das relações de trabalho a partir da década de 1980, levou à desarticulação de partidos políticos de esquerda e de sindicatos em detrimento de movimentos pretensamente independentes com pautas específicas.

A valorização da pauta identitária como a “nova esquerda”, ou seja, como uma militância mais “moderna” do que a tradição de lutas de partidos e sindicatos, que seria, nesta lógica, “antiquada”, resulta do modelo social imposto pelo neoliberalismo estadunidense.

Segundo Hobsbawm, “desde a década de 1970 jovens da classe média abandonavam os principais partidos da esquerda por movimentos de mobilização mais especializados como os de defesa do meio ambiente, feministas e outros chamados novos movimentos sociais, assim enfraquecendo-os”. Ele frisa que mesmo “administrações nominalmente encabeçadas por socialistas abandonavam suas políticas tradicionais”. Para o historiador o mais importante a ressaltar sobre esses movimentos é a rejeição à “velha política”.

Na mesma série de matérias sobre a esquerda, a Folha publicou no dia 24/09/2023, o texto “Sindicalismo que gerou Lula e base do PT sofre com perda de influência”, assinado pela jornalista Anna Virginia Balloussier, que aponta a ascensão da pauta identitária e a suposta decadência do movimento sindical. Balloussier afirma que hoje o sindicalismo “se acotovela para ganhar espaço entre causas mais midiáticas, como a questão identitária protagonizada por feministas, antirracistas e ativistas LGBTOIA+”. A matéria diz que a diminuição do emprego na indústria é uma das causas da perda da influência dos sindicatos. E coloca a uberização como uma “nova lógica trabalhista” que “colabora para a decadência do monopólio sindical”.

O texto defende que o sindicalismo perde força em um contexto de mudanças no mundo do trabalho e agarra-se à pauta identitária para sobreviver. Mas a leitura correta da situação é: a perda de força do sindicalismo está diretamente ligada à perda de direitos dos trabalhadores e ao aumento da informalidade no lugar de uma empregabilidade mais segura, que proporciona mobilidade e planejamento, seja na indústria, no serviço ou no comércio. Não é que o sindicalismo perdeu espaço. O trabalhador perdeu direitos, poder e representatividade desde a década de 1970. E, como reação à crise de 2008 e à pandemia, o mundo já vive uma retomada da ação sindical, a exemplo da histórica greve das montadoras nos EUA, da ocorrência da primeira greve no Japão em seis décadas, e da eleição do ex-sindicalista Lula, no Brasil, em um contexto de revalorização dos trabalhadores.

Sobre os sindicalistas “se acotovelarem” para “ganhar espaço entre causas mais midiáticas, como a questão identitária”, sendo o movimento sindical formado por pessoas que também podem ser suscetíveis aos efeitos do imperialismo identitário, é verdade que esse discurso, na forma liberal como está colocado, ressoa internamente. Entretanto, demandas específicas, como as das mulheres, dos negros, dos homossexuais, das pessoas com deficiência, ou temas como a trabalho infantil e a preservação ambiental, estão presentes na agenda sindical desde muito antes de a linguagem neutra virar o modismo que é. Com secretarias especializadas, os sindicatos, assim como os partidos, conquistaram espaço e poder para estes grupos. O que ajudou a aquecer o mercado, despertando o interesse liberal em investir nas pautas identitárias.

O mundo pós Guerra Fria, moldado a partir da imposição de ditaduras na América Latina e de guerras em países estratégicos, é um mundo de hegemonia cultural dos EUA. De modo geral, a “esquerda” estadunidense fala muito mais sobre direitos individuais do que sobre organização social coletiva. É uma concepção apoiada na liberdade de expressão e em traços de identidade, mas que não atinge as causas da geração de pobreza. A esquerda americana é, enfim, a esquerda liberal que o artigo da Folha apresenta.

Mas esta é apenas uma versão, limitada, por sinal. E, embora este discurso, que se apresenta como esquerda tenha uma base simplória, ele se apoia em um marketing global, algo como o imperialismo cultural hollywoodiano. É uma jogada que pretende validar sua versão não só como a mais evoluída, mas como a versão padrão. Isso não tem nada de novo ou de moderno. É a velha disputa de poder global.

O problema da pauta identitária não são as causas que ela defende. O problema é despolitizar e descontextualizar essas causas, deixando de questionar a raiz de um sistema opressor que atinge os mais pobres, independentemente da cor, sexo e orientação sexual.

Os direitos individuais e a representatividade de grupos oprimidos em espaços de poder são objetivos nobres e de esquerda. Mas considerar que preencher o quesito identitário em um mundo em que a desigualdade é naturalizada, sem pensar antes em mudar esse mundo, só ofusca o problema, minando a resistência contra ele.

Todo debate sobre a situação de grupos historicamente oprimidos deve ter como pilar a história econômica da divisão da riqueza e da divisão do trabalho. Somente em uma sociedade em que o povo tem melhores condições de vida e de trabalho, prosperidade, incentivo ao crescimento e segurança financeira, esses direitos individuais serão plenamente assimilados e realizados. E a história prova que a boa e velha esquerda, com seus partidos, sindicatos e movimentos universais, agregadores e populares, é o campo que pode semear esta mudança.


Texto em português do Brasil

“O Corno” – a ‘Concha de Ouro’ para um filme muito galego e muito português, realizado pela ‘donostiarra’ Jaione Camborda

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Jaione Camborda é uma cineasta de 40 anos, nascida em San Sebastián / Donostia, filha de pai basco e mãe catalã, e que reside na Galiza.

Depois da curta-metragem “Rapa das Bestas” (2017) e da longa “Arima” (2019), realizou este ano “O Corno” e viu o seu filme ser seleccionado para a secção oficial do festival da sua cidade natal.

“O Corno” é um filme de mulheres, sobre a vida das mulheres, o seu trabalho, os seus problemas e os seus dramas. A acção de corre na Ilha de Arousa, na província de Pontevedra, no início dos anos 70 do século passado, os últimos anos do franquismo. O espectador pode seguir a actividade de uma mulher, o seu labor como mariscadora ou trabalhando no campo, mas também na ajuda a outras mulheres nos seus partos ou nos seus abortos. A trama, desenvolvida com uma fluência narrativa assinalável, leva María, assim se chama a personagem interpretada pela excelente Janet Novás (bailarina e criadora galega), a ter que fugir clandestinamente para Portugal através das rotas do contrabando. Algumas das cenas passam-se em águas e terras de Caminha e de Vila Nova de Cerveira e aqui chegados é tempo de falar na participação portuguesa na produção, assegurada por Bando à Parte /Rodrigo Areias que, a partir de Guimarães tem vindo a desenvolver um dos principais focos de produção cinematográfica em Portugal. A fotografia, excelente, é de Rui Poças (dei por mim a pensar no Affonso Beato em ‘Cinco Dias, Cinco Noites) e como intérpretes encontramos vários portugueses (Nuno Sá, Filomena Gigante, …).

A produtora ‘Bando à Parte’ fica assim associada a uma Concha de Ouro de San Sebastián, a quarta consecutiva conquistada por uma mulher e a primeira por uma cineasta espanhola.

E Jaione Camborda só não não é a primeira pessoa ‘donostiarra’ a ganhar a Concha de Ouro porque, há precisamente 50 anos, Víctor Erice conseguiu-o com “O Espírito da Colmeia”. O mesmo Víctor Erice que agora nos deslumbrou com “Cerrar los Ojos” exibido no âmbito do Prémio Donostia que lhe foi atribuído nesta edição do Zinemaldia.

Entretando aqui fica o registo dos restantes prémios da secção oficial atribuídos por um júri formado pela cineasta Claire Denis, pela actriz Fan Bingbing, a produtora Cristina Gallego, a fotógrafa Brigitte Lacombe, o produtor Robert Lantos, a actriz Vicky Luengo e o realizador Christian Petzold:

  • Concha de Prata para a melhor realização a Tzu-Hui Peng e Ping-Wen Wang por ”Chun xing” / A Journey in Spring (Taiwán);
  • Prémio para o melhor guião para María Alché e Benjamín Naishtat por “Puan” (Argentina-Itália-Alemanha-França-Brasil), longa-metragem dirigida por ambos;
  • Concha de Prata para a melhor interpretação, ex aequo, para Marcelo Subiotto em “Puan”e Tatsuya Fuji em “Great Absence” de Kei Chika-ura (Japão);
  • Concha de Prata para a melhor interpretação secundária para Hovik Keuchkerian pelo seu personagem em “Un amor”, de Isabel Coixet (Espanha).

Dirigida por Isabella Eklöf, ”Kalak” (Dinamarca-Suécia-Noruega-Finlândia-Gronelândia-Países Baixos) obteve o Prémio para a melhor fotografia (Nadim Carlsen) como o Prémio Especial do Júri.

 

Outros prémios oficiais

Nos outros títulos do palmarés, várias presenças de autores argentinos e indianos, filmes que competiram e foram premiados em Veneza e Cannes e uma co-produção com participação portuguesa.

Eis a lista dos prémios:

  • Prémio ‘Novos Directores’:Bahadur The Brave”, da realizadora indiana Diwa Shah;
  • Prémio ‘Horizontes’:El castillo”, primeira longa-metragem do argentino Martín Benchimol;
  • Prémio ‘Zabaltegi/Tabakalera’:El auge del humano 3”, do argentino Eduarado Williams. Esta é uma co-produção Argentina-Portugal-Países Baixos-Taiwán-Brasil-Hong Kong-Perú. O filme esteve na competição de Locarno e a parte portuguesa da produção é da Oublaum Flmes.
  • Menção Especial da secção ‘Zabaltegi/Tabakalera’: “El juicio”, de Ulises de la Orden, outro realizador argentino.
  • Prémio ‘Nest’:Amma ki katha”, de Nehal Vyas (Índia),
  • Menção especial ‘Nest’:Entre les autres” de Marie Falys (Bélgica);
  • Prémio do Público – Cidade de Donostia / San Sebastián: “La sociedad de la nieve” de J.A. Bayona (Espanha), filme que encerrou o recente Festival de Veneza;
  • Prémio do Público para um filme europeu: “Io, Capitano” de Matteo Garrone (Itália), Leão de Prata da Mostra de Veneza para o melhor director e prémio Marcello Mastroianni para o jovem actor Seydou Sarr;
  • Prémio Irizar para o cinema basco:El sueño de la sultana”, estreia na longa-metragem da realizadora de animação Isabel Herguera;
  • Prémio da Juventude: “La Estrella Azul” de Javier Macipe (Espanha-Argentina);
  • Prémio FIPRESCI: Fingernails” (Isto vai doer), filme norte-ameriacano do grego Christos Nikou que competiu na secção oficial.
  • Prémio da secção ‘Culinary Zinema”:La passion de Dodin Bouffant”, filme francês do vietnamita Tran Anh Hung, autor do inesquecível “O Odor da Papaia Verde” (1992). Neste seu novo trabalho, que participou na secção oficial do Festival de Cannes, o grande destaque vai para a interpretação de Juliette Binoche (Prémio Donostia em 2022) que mais uma vez esteve em San Sebastián. Uma presença que se vai tornando habitual.

Prioridades orçamentais para 2024

As estimativas apontam para que 2023 seja um ano muito positivo para Portugal tanto no domínio das contas externas como no domínio das contas públicas, os dois domínios que mais preocupações trouxeram aos decisores públicos no último cinquentenário, e seria imperdoável desperdiçar o que se conseguiu com gestos ou opções sem sentido.

Nestes domínios, convém ter em conta que tanto o esfriamento das relações com a China como a inflação tiveram impactos positivos, sem prejuízo do que de bom ou menos bom se possa ter feito dentro ou fora de portas, e que a conjuntura não será sempre a mesma.

A primeira preocupação a reter para a política orçamental de 2024 deverá ser a de evitar prejudicar a economia com iniciativas mal informadas e mal pensadas.

O mercado imobiliário nos principais países do mundo está em quebra profunda. A quebra começou na China, mas é hoje também uma realidade nos EUA ou na Alemanha; ela é especialmente aguda no domínio comercial e serviços, onde já chegou também a Portugal, e inevitavelmente chegará aos restantes domínios, onde entre nós se vive ainda em plena euforia.

Nestas condições, as anunciadas restrições ao investimento estrangeiro e os bloqueios ao alojamento local apresentam-se como ainda mais absurdos do que o que já eram antes, sendo de todo em todo necessário que o Governo arrepie caminho na trajectória que traçou.

Com conta, peso e medida, trata-se antes de facilitar a oferta onde é necessário fazê-lo – e todas as medidas inteligentes (baseadas na fiscalidade e na simplicidade) destinadas a limitar o pousio especulativo de ruínas, terrenos ou casas desocupadas em áreas de maior procura devem ser prosseguidas, como deve ser prosseguida a promoção da habitação social.

Depois há o grande desafio do necessário aumento dos salários, e, diga-se de passagem, parte importante do problema do imobiliário é mais de rendimento baixo do que de rendas altas. É necessário despenalizar completamente o salário e os rendimentos sociais mínimos e aliviar tanto quanto possível o salário médio, usando pelo menos parcialmente como contrapartida a reposição de taxas normais do IVA.

Neste domínio, seria absolutamente irresponsável aceitar tomar decisões sobre tectos fiscais para décadas como é proposto pelo PSD, por que não é possível prever a natureza dos desafios com que estamos confrontados.

O que seria, em alternativa, necessário, seria pensar em formas e mecanismos para conter a progressão de custos públicos, única forma responsável de acautelar o futuro, criando grupos de trabalho focados nesse objectivo.

A redução do imposto sobre o salário é prioritária, e é a principal forma como o Estado pode contribuir positivamente para o desafio da convergência salarial europeia.

Em qualquer caso, é necessário olhar com mais atenção a defesa, tanto na imprescindível solidariedade com as vítimas da expansão imperial na Europa, como nos desafios que se nos apresentam para o futuro. A ideia de que não precisamos de defesa porque outrem trata dela em nosso favor pode revelar-se como desastrosa.

Os investimentos públicos devem ter em atenção o seu impacto na economia portuguesa e não ser planeados em lógicas faraónicas. O controlo do poder dos grandes monopólios nas infraestruturas aeroportuárias e elétricas ou dos oligopólios rodoviários e energéticos é essencial para acautelar os interesses do cidadão.

A carta que desmentiu a Igreja e chamuscou a biografia de Pio 12

Se o silêncio é uma prece, o silêncio da Igreja Católica sobre o holocausto é um réquiem. Não exatamente um réquiem para os 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas – mas, sim, para líderes omissos como o papa Pio 12 (1876-1958), a quem o Vaticano sempre procurou blindar.

As suspeitas de que o pontífice sabia do genocídio já eram generalizadas, mas ganharam força neste mês, graças a uma revelação que joga a Igreja contra a parede. É uma carta escrita pelo padre jesuíta Lother Koenig em 14 de dezembro de 1942, em meio à 2ª Guerra Mundial.

Horrorizado, Koenig – que integrava a resistência contra os nazistas na Alemanha – tenta alertar o papa Pio 12 sobre as atrocidades em três campos de concentração nazistas (Auschwitz, Belzec e Dachau). Segundo o padre, havia dias em que até 6 mil judeus e poloneses eram mortos nas câmaras de gás.

A correspondência foi enviada ao também padre Robert Leiber, secretário pessoal de Pio 12, mas permaneceu desconhecida por mais de 80 anos. Deve-se sua recente descoberta a Giovanni Coco, arquivista do Vaticano. Não era a primeira nem a segunda vez que a denúncia da Shoá – o assassinato em massa dos judeus – chegava ao papado. “Antes de dezembro de 1942, o Holocausto passou pelo menos dez vezes pelo Vaticano e o papa ficou calado”, lembrou o jornalista Elio Gaspari no domingo (23).

A Santa Sé jamais admitiu que Pio 12 sabia em primeira mão dos crimes humanitários do regime de Adolf Hitler. Segundo a cúpula católica, as críticas ao “silêncio da Igreja” se baseavam em especulações. A carta de Lother Koenig desmente a versão oficial e chamusca ainda mais a biografia de um papa que já foi chamado de “salvador”, por ter acolhido judeus romanos em dependências da Igreja, como templos e escolas. Às voltas com a polêmica, o papa Francisco deve manter congelada a proposta de beatificação de Pio 12.

À BBC, o escritor e pesquisador britânico John Cornwell, autor de O Papa de Hitler, condenou o epiteto de “salvador de judeus” atribuído a Pio 12. “Em toda a Europa ocupada, muitos católicos – padres, freiras e fiéis – salvaram muitos judeus. Mas acho escandaloso que o Vaticano afirme que isso aconteceu graças às instruções do papa”, declarou Cornwell. “Há muito poucas evidências que indiquem que o papa tenha pedido a seus subordinados que fizessem qualquer coisa para salvar os judeus da perseguição.”

Ele lembra a Reichskonkordat (Concorda com o Reich), um acordo firmado entre a Igreja e os nazistas para que os católicos pudessem manter suas escolas em funcionamento na Alemanha, desde que não se intrometessem em assuntos políticos. “Devido a essa negociação, os religiosos foram proibidos de fazer qualquer crítica ao Estado alemão – e os jornais católicos, que eram muitos, também desapareceram.”

Conforme escreveu William Faulkner em Réquiem por uma Freira (1950), “o passado nunca está morto. Na realidade, ele nem sequer é passado”. O cinema já abordou a omissão do trono do Vaticano em diversas produções, como Amém (2002), do diretor grego Costa Gavras. O filme é inspirado na peça alemã O Vigário (1963), de Rolf Hochhuth. A trama – do teatro ao cinema – acusa Pio 12 de ter feito um pacto com os nazistas em nome de um objetivo comum: o combate ao comunismo.

Em 1939, já à frente da Santa Sé, Pio 12 saudou a vitória do general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola como um marco na luta contra os “prosélitos do ateísmo materialista”. Por estas e outras declarações do pontífice, o historiador David Kertzer, autor de O Papa e Mussolini, já havia sentenciado: “Como líder moral, Pio 12 deve ser considerado um fracasso”. A carta de Lother Koenig é demolidora.


por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

O homo sapiens sapiens e o futuro

A questão central envolvente à relação do Homem com a natureza passa pelo seu estádio civilizacional onde a educação e a formação são pilares centrais.

Neste contexto o papel desempenhado por cada um de nós é de crucial importância nos panoramas nacional e internacional se bem que, a ação política deva ser contextualizada a cada realidade especifica. Local; nacional; continental, intercontinental, e outras, onde as politicas sociais implementadas e, a implementar, desempenham um papel crucial na preservação dos habitats indispensáveis e, por isso, necessários à existência de condições aceitáveis para a vida do Planeta e dos espécimes que nele habitam. Animal; vegetal; mineral e outros.

De entre todos tem sido o Ser Humano, evolução da espécie homo até ao atual homo sapiens sapiens, quiçá por ser portador de mobilidade e de capacidade racional, pioneira da inteligência, aquele que mais tem influído para a degradação do ambiente em contraponto com as necessidades emergentes ao seu desenvolvimento socioeconómico.

Importa por isso reverter procedimentos comuns entretanto instalados e geracionalmente transitados sempre na senda de desígnios coletivos ignorando os danos colaterais provocados ao Planeta.

Esses procedimentos tem na sua génese as políticas educativas em sintonia com a era temporal na História da Humanidade.

Sendo que, na atualidade, acresce à educação a formação e, como consequência, o desempenho em sociedades ditas civilizadas que constatamos estar a caminhar para o abismo.

Ao longo da História as revoluções decorrem da disputa de interesses e a educação tem acompanhado esse fenómeno sem que alguma vez o Ser Humano tenha considerado que lhe deveria ter dado primazia.

Daí que, no tempo presente urja revolucionar os processos educativos e reformular os procedimentos formativos da espécie para gerar condições propicias a um maior equilíbrio social; ambiental; politico; e os demais equilíbrios necessários.

A educação e a formação do individuo tem acompanhado a várias eras dos diversos estádios civilizacionais refletindo nos citados a realidade civilizacional existente.

Acontece que,  as civilizações resultaram de acasos e das necessidades do Ser Humano e nunca de diretrizes políticas ou sequer filosóficas. Ou seja; o Homem andou sempre atrás de soluções e nunca da previsão científica para os problemas que se adivinhavam.

A classe política, nesse contexto, procurou sempre assegurar o poder e, nunca precaver soluções para os previsíveis os problemas que a Humanidade teria de enfrentar em resultado das politicas avulsas viradas para a economia em detrimento do equilíbrio social e, ambiental.

Como é obvio, constata-se a evidência pura e dura de que as classes dirigentes resultantes de gerações transitadas nunca aprenderam porque para isso nunca foram educadas e, muito menos, formadas.

Daí que o futuro seja para as novas gerações uma incógnita e, para as atuais um desafio coletivo.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

Requiem para o Dólar

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A última Cimeira do BRICS não confirmou apenas a formação de um novo bloco político-económico na cena internacional e o princípio do fim de um mundo unipolar, pois o anúncio da adesão de seis novos membros e especialmente a confirmação do interesse de muitos mais, trouxe para a ribalta a dura realidade daquela que será a principal razão motora para essa opção: a saturação dos países do Sul global face ao abuso de poder dos países do Norte.

Contrariamente ao que se poderia pensar, foram as sanções económicas unilateralmente decididas por Washington contra a Rússia, a apropriação das reservas e do ouro dos bancos centrais russo e venezuelano e não o conflito na Ucrânia, que transformaram o dólar americano numa arma e resultaram no realinhamento global a que estamos a assistir.

Por imposição da arquitectura económico-financeira desenhada no pós-guerra (Acordos de Bretton-Woods), o dólar americano tem sido utilizado como meio de pagamento internacional (mesmo após a declaração unilateral da sua inconvertibilidade), mas as sanções mostraram ao mundo todos os riscos da sua utilização.

O alargamento dos BRICS (a concretizar no início de 2024 com a adesão da Argentina, Arábia Saudita, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irão), mais do que reforçar o peso do grupo em termos de PIB mundial (cálculos conservadores estimam-no em mais de 30%, outros entre 40 a 45%), representa a concentração da quase totalidade da produção mundial de petróleo, algo que não poderá deixar de afectar o papel do dólar como moeda de reserva mundial, traduzindo-se, quiçá, no fim do petrodólar, o que parece confirmar-se com o anúncio, no início deste ano, que até a Arábia Saudita começou a aceitar pagamentos de petróleo noutras moedas, num movimento iniciado em 2000 pelo Iraque e continuado em 2006 pela Venezuela.

Os BRICS poderão tentar criar uma nova moeda de reserva baseada num cabaz ponderado das suas moedas, mas isso pode ser potencialmente conflituoso (a China deverá estar perfeitamente ciente que semelhante iniciativa poderá criar tensões entre os membros devido a disputas sobre as participações de cada moeda no cabaz) e desnecessário, porque os bancos centrais podem perfeitamente manter as suas reservas sob a forma das moedas dos respectivos parceiros comerciais.

A verdadeira e mais profunda implicação da desdolarização do comércio internacional será o agravar dos problemas financeiros dos EUA, país cuja economia tem vindo a perder peso enquanto assiste ao aumento dos seus défices orçamentais e comerciais, que se manterão estabilizados enquanto o dólar for a moeda mundial, pois os bancos centrais estrangeiros terão de manter as suas reservas em dívida do Tesouro norte-americano, seja para efeitos de pagamentos, seja pela existência de uma relação directa entre o aumento daqueles défices e o crescimento das reservas do sistema bancário mundial.

A situação parece estar a mudar quando uma dúzia de países, que representam cerca de metade da população mundial e quase outro tanto do respectivo PIB, deixarem de utilizar o dólar; essa mudança levará à redução do mercado da dívida norte-americana precisamente quando ele vai ser mais necessário para equilibrar o aumento das importações por uma economia que deslocalizou quase toda a sua produção. A redução do uso do dólar traduzir-se-á uma diminuição da procura global pela dívida dos EUA, o que significa maior pressão sobre o valor cambial dessa moeda e a perspectiva de aumento da inflação devido ao aumento dos preços das importações.

Posto isto, estamos numa encruzilhada. Num daqueles pontos de viragem indelevelmente marcados na História; estamos cada vez mais próximos do fim de uma versão norte-americana da ordem global, que está a ser destruída pela sobranceria e a indiferença do Ocidente, muito agravada pela visão hollywoodesca dos “bons” e dos “maus”, tão do agrado norte-americano.

A oportunidade de Washington lidar com a Rússia e a China (na linha do preconizado pelo ex-conselheiro de segurança Zbigniew Brzezinski, em textos como este) já passou, o que deixa agora em aberto a questão de como irão Moscovo e Pequim lidar com ela. O monopólio neoconservador sobre a política externa dos EUA significa que não há outras vozes que as administrações (sejam elas Democratas ou Republicanas) possam ouvir e a hegemonia americana está fora de questão, a sua cegueira levou à destruição do euro (a última alternativa viável para o Ocidente prolongar algum papel relevante no cenário financeiro global) e o papel subserviente da UE na crise ucraniana tornou-a uma inutilidade política global e ajudou a colocar o Ocidente numa posição cada vez menos invejável.

Victor Erice: um ‘Prémio Donostia’ para um cineasta basco

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Com a gala de entrega de prémios e a exibição de “Dance First”, que nos mostra pedaços da vida de Samuel Beckett pela mão do cineasta britânico James Marsh, termina esta noite a edição de 2023 do Festival de San Sebastián.

Na noite de ontem o certame viveu um dos seus momentos maiores: a entrega do ‘Prémio Donostia’ a Victor Erice (Karrantza, Biscaia. 1940) na passagem do 50º aniversário da atribuição da Concha de Ouro a “O Espírito da Colmeia”. Foi em 1973, 14 anos depois de no 7º Festival de San Sebastián (a cidade em que vivia) Erice ter ficado deslumbrado com “Os 400 Golpes” de François Truffaut e com isso ter iniciado uma ligação estreita com o cinema.

Autor de uma escassa filmografia – “O Espírito da Colmeia” (1973) , “O Sul” (1983), “O Sonho da Luz / O Sol do Marmeleiro” (1992) e algumas curtas metragens – este cineasta, realizador de uma longa-metragem de 10 em 10 anos, é muito mais reconhecido pelos cinéfilos do que pela generalidade do público. Contudo é também uma personalidade que, ao longo dos anos tem influenciado vários criadores, espanhóis e não só.

“Cerrar los Ojos”

Trinta anos depois de “O Sol do Marmeleiro” esteve este ano em Cannes e Toronto com “Cerrar Los Ojos” agora exibido em San Sebastían. Trata-se de uma obra sobre a memória, a propósito de um filme não concluído e o misterioso desaparecimento de um actor.

O ‘Prémio Donostia’ foi entregue a Victor Erice pela actriz espanhola Ana Torrent que se estreou no cinema há meio século, como protagonista de “O Espírito da Colmeia”, quando tinha apenas seis anos e que agora voltou a trabalhar com Victor Ercice em “Cerrar los Ojos”.

 

Hiroshi Teshigahara em retrospectiva

Hiroshi Teshigahara (1927-2001) por muitos considerado um autor fundamental do cinema japonês dos anos 60 é um autor quase desconhecido do público. A sua obra tem estado quase exclusivamente ao alcance dos frequentadores das cinematecas. Os espectadores do Festival de San Sebastián tiveram a oportunidade de assistir à retrospectiva completa deste realizador (20 títulos — longas, média e curtas metragens) rodadas entre 1953 e 1992.

Nascido em Tóquio, cidade em que faleceu, Teshigahara estudou Belas Artes, começou pelo cinema documental, interessou-se pelo neo-realismo italiano e pelo cinema francês. Ganhou o Prémio Especial do Júri em Cannes com “A Mulher da Areia” filme que foi nomeado pra os Oscares de melhor realizador e melhor filme estrangeiro.

 

Um pequeno ciclo de clássicos

A exibição de clássicos não se esgota na retrospectiva antes referida. Como tem acontecido desde há alguns o festival programou um pequeno ciclo títulos modernos ou antigos que de alguma forma reservaram lugar na história do cinema.

Os filmes exibidos foram:

  • Akai tenshi / (O Anjo Vermelho) de Yasuzo Masumura (Japão,1966);
  • Aloïse” de Liliane de Kermadec (França, 1975), com Isabelle Huppert e Delphine Seyrig;
  • Fúria espanyola” de Francesc Betriu (Espanha, 1975);
  • “História de um Proprietário Rural” de Yasujiro Ozu (Japão, 1947);
  • “Nueve Reinas” de Fabián Bielinsky (Argentina, 2000);
  • “Principio y fin” de Arturo Ripstein (México, 1993);
  • “Festival em las entrañas” de José Val del Omar (Espanha, 1963/1965) e
  • “El Realismo Socialista” de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento (Chile, 1973/2023).

Biden abraça “modo Bernie Sanders” para atrair sindicatos e isolar Trump

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Ainda é cedo para saber se a greve conjunta dos metalúrgicos da Ford, da General Motors e da Stellantis, nos Estados Unidos, será vitoriosa. Mas os trabalhadores dessas montadoras, às voltas com reivindicações legítimas, já despertaram uma atenção sem precedentes tanto do presidente Joe Biden quanto do ex-presidente Donald Trump. É cada vez mais provável que a batalha pelo coração do movimento sindical será um dos temas centrais da próxima eleição presidencial norte-americana, em 2024.

Na terça-feira (26), Biden causou estupor ao participar de um piquete de grevistas em Michigan, a “capital nacional da indústria automobilística”. O movimento é liderado pelo UAW (United Auto Workers), que representa nacionalmente 143 mil trabalhadores do setor automotivo. Nenhum dos 45 antecessores de Biden – de George Washington ao próprio Trump – ousou se envolver tão diretamente numa greve trabalhista.

Afinal, por que o presidente protagonizou essa cena tão pioneira e inusitada?

Para chegar à Casa Branca, Biden enfrentou Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata. Seu rival se autodeclarava “socialista” – ele representava o Democratic Socialists of America (DAS) –, percorria sindicatos e apoiava greves abertamente. Nas prévias, Sanders endossou o Medicare for All (uma espécie de SUS para os Estados Unidos) e prometeu perdoar dívidas estudantis.

Embora seja mais velho que Biden, Sanders mobilizou especialmente o eleitorado mais jovem, além de estratos da classe trabalhadora. Não foi o suficiente para lhe dar a candidatura – os democratas apostaram que um nome “moderado” pudesse atrair mais adesões e impedir a reeleição de Trump. Biden, de fato, venceu a disputa em 2020 e se tornou presidente dos Estados Unidos. A maioria das bandeiras de Sanders ficou esquecida, a não ser a questão sindical.

Em 20 de setembro, quando os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos assinaram, em Nova York, a Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras, Biden reforçou esse vínculo. “Não queremos que só uma classe se saia bem. Queremos que os pobres tenham oportunidades de subir na vida – e essa visão é impulsionada por uma força trabalhista forte”, afirmou, ao lado do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. “É por isso que meu governo tem sido chamado de o governo mais pró-sindicatos da história dos Estados Unidos.”

Não que seja uma concorrência tão complexa. Abraham Lincoln (1809-1895), o maior dos ocupantes da Casa Branca, aboliu a escravidão e promoveu a reforma agrária – mas num período pré-sindical. Theodore Roosevelt (1858-1919) chegou a declarar apoio a greves, sem, no entanto, aparecer publicamente em manifestações. Entre os democratas, Franklin D. Roosevelt (1882-1945) e Harry Truman (1884-1972) reforçaram a proteção ao trabalhador e incentivaram a sindicalização. Mas ir a uma greve e ficar lado a lado com trabalhadores, escancarando a adesão, só Biden.

E por que só agora?

Alguns motivos sobressaem. Um deles é que Biden era acusado de ser audacioso no discurso, mas retraído nas ações. Desde a posse, ele repete que “Wall Street não construiu este país (os Estados Unidos). A classe trabalhadora é que construiu este país – e os sindicatos construíram a classe trabalhadora”. No entanto, em impasses maiores, sua postura desagradou.

No ano passado, sua proposta para solucionar a campanha salarial dos ferroviários foi considerada, antes de tudo, autoritária. Muito embora declarasse que os 60 mil trabalhadores de empresas como Union Pacific, BNSF e Norfolk Southern mereciam valorização, Biden deixou a impressão de que apenas temia uma greve nas ferrovias e seus impactos econômicos. Os prejuízos, em caso de eventual paralisação, eram estimados em US$ 2 bilhões por dia. Agora, no caso da greve nas montadoras, Biden foi mais incisivo e evitou o ruído.

Uma segunda razão é a força-tarefa dos democratas para resgatar o legado trabalhista do partido. Esse espólio tem como referência máxima a Era Franklin D. Roosevelt (1933-1945), que foi um divisor de águas na política estadunidense. Os democratas, favoráveis à escravidão no século 19, tentaram enfrentar o abolicionismo, saíram derrotados e “perderam o chão”. Após o assassinato de Lincoln, os republicanos venceram 13 de 16 disputas à Casa Branca.

Foi somente com a eleição de Roosevelt, em 1932, e com o êxito do New Deal, a partir de 1933, que o Partido Democrata se reconectou com a classe trabalhadora. A ascensão do movimento sindical foi tão acelerada que os republicanos, ao voltarem ao comando do Congresso, aprovaram, em 1947, a nefasta Lei Taft-Hartley, uma legislação essencialmente antigrevista e anticomunista, vigente até hoje.

Mas a principal motivação de Biden é que o discurso xenofóbico de Trump – segundo o qual imigrantes têm roubado empregos dos norte-americanos – ecoou em setores da classe trabalhadora. Assim como ideias ultraliberais da extrema-direita ganharam adesão no Brasil entre trabalhadores mais precarizados, como motoristas de Uber e entregadores do iFood, o trumpismo teve milhões de simpatizantes.

Graças à pandemia de Covid-19 e à recessão, o número de postos de trabalho recuou entre o início e o fim do governo Trump – caso único na história dos Estados Unidos e uma das razões para sua não reeleição. Na prática, o lema “american first” (“primeiro, os norte-americanos”) não se concretizou. Mas as fragilidades econômicas da administração Biden levaram o ex-presidente a retomar um discurso salvacionista para os trabalhadores. Trump quer intensificar as agendas junto a trabalhadores, ainda que à margem dos sindicatos, que em geral lhe rejeitam.

Esta é a razão central que faz Biden abraçar o “modo Bernie Sanders”, posar com boné da UAW e discursar em megafone para operários do setor automotivo. A greve não é apenas por salários – mas também pelo futuro da indústria, já que veículos elétricos, uma vez dominantes, demandarão menos mão de obra. O corte de empregos nas fábricas é inevitável a longo prazo, e o movimento sindical se antecipou ao discurso.

Na mesma manhã em que o presidente foi à greve, Trump, seu provável concorrente eleitoral em 2024 postou uma provocação: “O mandato draconiano e indefensável de veículos elétricos de Joe Biden aniquilará a indústria automobilística dos EUA e custará incontáveis milhares de empregos a trabalhadores do setor automobilístico. Com Biden, não importa o quanto ganhem por hora, em três anos não haverá empregos no setor automobilístico, pois todos virão da China e de outros países. Comigo, haverá empregos e salários como você nunca viu antes”.

movimento sindical vive uma onda de renascimento no país e pode definir, mais uma vez, a eleição presidencial. “A adesão aos sindicatos caiu muito nos EUA nas últimas décadas, mas ainda representa uma parte importante da coligação eleitoral democrata. Uma das razões pelas quais Donald Trump foi eleito em 2016 foi porque os sindicatos em estados indecisos, como a Pensilvânia, votaram nele”, lembrou Rana Foroohar, na semana passada, no Financial Times. Ao que tudo indica, o “modo Bernie Sanders” veio para ficar – ao menos até a eleição.


por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

O adeus de Rosa, a posse de Barroso e o conflito entre STF e Congresso

Novamente temos dois poderes em conflito, agora o Congresso e o STF, apesar do que aprendemos na era Bolsonaro sobre o quanto isso é danoso à democracia. Os bombeiros precisam entrar logo em ação, antes que a situação desande.

A emocionada despedida de Rosa Weber ontem, e a concorrida posse de Roberto Barro, hoje, abrem uma nova fase no Supremo. O novo presidente, que não é discreto como Rosa, enfrentará a birra do Congresso, que apenas começou ontem, com a aprovação do projeto a favor do marco temporal para demarcação de terras indígenas, enquanto a corte concluía o julgamento que condenou a tese à inconstitucionalidade.

Na Câmara, houve uma obstrução das votações e mais uma tentativa de fustigar o STF com a aprovação do projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, questão já decidida pelo STF em 2011. Após o governo garantir a liberação de recursos para o financiamento das lavouras, ruralistas e aliados suspenderam a obstrução.

O caso do marco temporal vai sobrar também para Lula, embora o Executivo não seja parte na briga. Se o  projeto patrocinado pelos ruralistas, já aprovado pela Câmara, for confirmado pelo plenário do Senado, muito provavelmente Lula o vetará, seguindo o entendimento do Supremo. O Congresso pode derrubar o veto, mas alguém recorrerá novamente ao STF, que certamente derrubaria a lei. E quem perderá com a disputa serão, mais uma vez, os povos indígenas, com uma inevitável paralisia das demarcações, depois de Bolsonaro ter passado quatro anos sem aprovar nenhuma terra indígena.

Rosa despediu-se do cargo com uma fala emocionada, contendo a custo as lágrimas, em que os pontos fortes foram mais uma condenação aos inimigos da democracia que depredaram a sede do Supremo com fúria particular no 8 de janeiro e a defesa da igualdade de gênero. E ela merece um justo aplauso pela conduta em relação a estes e outros temas. Ainda esta semana, no CNJ, ela fez aprovar uma norma de alternância no acesso ao segundo grau do Judiciário, que tornará com o tempo o Judiciário menos patriarcal. Pautou e deixou seu voto na questão do aborto até à 12ª. semana de gravidez, além de levar ao fim o julgamento do marco temporal.

Barroso é diferente de Rosa. Não é técnico e discreto como ela, que só falava nos autos. Em mais de um momento ele disse mais do que devia, para quem está no papel, como na recente declaração de que “derrotamos o bolsonarismo”. Claro que entendemos, ele falava do povo brasileiro mas alimentou a guerra ideológica. Ou mesmo quando nos divertiu ao desengraçar um bolsonarista que o apupava em Nova York: “perdeu, Mané, não amola”. A nova dinâmica do STF dependerá muito de como ele se haverá na presidência.

De que reclama o Congresso? De que o Supremo legisla e o atropela em suas atribuições exclusivas. Mas o Supremo não decide sem ser provocado. Julgou o marco temporal ao decidir sobre um recurso extraordinário envolvendo caso concreto em Santa Catarina.

Está julgando a questão do porte de drogas para uso próprio porque o Congresso legislou mal.  Aprovou uma lei de drogas em 2006 em que previu tratamento diferenciado para usuário e traficante. Entretanto, não fixou os critérios a serem observados pela autoridade policial. Não estabeleceu a quantidade máxima que garante a um portador a classificação como usuário. E com isso, a polícia confere hoje tratamentos discriminatórios. Pobre e preto, mesmo portanto apenas um cigarro de maconha, é fichado como traficante, vai parar no sistema penitenciário, onde é aliciado, por bem ou por mal, pelas organizações criminosas, virando mesmo traficante.

Neste último caso também o Supremo não está “legislando” por iniciativa própria. Está decidindo sobre um caso particular mas de repercussão geral.

Barroso, que toma posse hoje numa solenidade concorrida, com direito a hino nacional cantado por Maria Betânia, vai enfrentar o vespeiro. Ele tem proposta para mudar o rito dos julgamentos. Quer garantir mais espaço para os advogados que atuam na defesa, acabando com a impressão de que o Supremo não os leva em conta. Os ministros ouvem as  apresentações mas  votam em seguida, dando a impressão de que já tinham posição firmada. Ele proporá que, após a defesa, o julgamento só seja retomado 30 dias depois, para que os ministros possam refletir sobre o que ouviram.

Isso é importante para a imagem do Supremo, para a opinião que os brasileiros têm da corte. Mas o problema inicial de Barroso será enfrentar o Congresso. Terá que vigiar as próprias palavras e valer-se  de mediadores políticos, da turma dos pacificadores.

Ainda sobre Rosa, em sua fala de ontem ela agradeceu a todo mundo que a acompanhou em sua trajetória na magistratura, do motorista aos pares no colegiado, não esquecendo os assessores. Homenageou a mãe e os filhos e figuras que já partiram, como Sepúlveda Pertence. Homenageou o Ministério Público não na pessoa do último PGR, Aras, que encerrou o mandato anteontem, nem na pessoa da interina que estava presente, Elizeta Ramos. Lembrou foi de Roberto Gurgel, que foi Procurador-Geral entre 2009 e 2013.

Mas registro uma omissão. Ministros do STF chegam lá por seus méritos, é claro, mas se um presidente da República não fizer a indicação, não haverá aprovação pelo Senado nem nada. Agradecer a um presidente pela indicação, ainda mais na hora da aposentadoria, não compromete a independência de um ministro. Rosa não citou Dilma Rousseff, que a indicou há 12 anos.


Texto original em português do Brasil

Novos Realizadores: um espaço de descoberta

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O Festival de San Sebastián tem, desde há muitos anos, a preocupação de conceder vários espaços para a descoberta e afirmação de novos valores. Desde logo na própria secção oficial que exibe ano após ano trabalhos de autores pouco ou nada conhecidos a par de outros já de créditos firmados. Contudo, é a secção “Novos Realizadores” o lugar expressamente dedicado à divulgação de primeiras ou segundas obras.

Os filmes têm que ser inéditos (só podem ter sido estreados no seu país de produção) e produzidos no último ano. Esta é uma secção competitiva, com um júri específico e um prémio pecuniário. Os filmes de “Novos Realizadores” são também candidatos ao Prémio da Juventude atribuído por um júri formado por estudantes com idades entre 18 e 25 anos.

Este ano são 11 os trabalhos a concurso. Na abertura e no encerramento dois filmes orientais.

Na abertura foi apresentado “Carefree Days”, segunda obra do realizador chinês Liang Ming que com o seu primeiro trabalho foi premiado em vários festivais, “Carefree Days” é a adaptação do romance homónimo de Ban Yu e segue uma jovem de uma cidade em decadência do norte da China e que procura o seu lugar no mundo. Para o encerramento “Beyond the Fog”, segundo filme do japonês Daichi Murase, o retrato íntimo de uma família que durante gerações geriu uma pousada numa remota aldeia de montanha.

Os restantes trabalhos desta secção foram:

  • “Achilles”, do iraniano Farhad Delaram;
  • “Bahadur the Brave”, da indiana Diwa Shah;
  • “Bayruna salu”, de Askhat Kuchinchirekov (Cazaquistão);
  • “El Otro Hijo”, do colombiano Juan Sebastián Quebrada;
  • “Hi, mom”, da russa Ilia Malakhova;
  • La estrella azul “, do espanhol Javier Macipe;
  • Last Shadow at First Light”, de Nicole Midori Woodford (Singapura);
  • “Les Rayons Gamma” do canadiano Henry Bernadet; e
  • “Mother, Couch!”, do sueco Niclas Larsson.

 

Cinema da América Latina em grande destaque

Doze histórias passadas na Argentina, Chile, México e Brasil dão corpo à secção “Horizontes Latinos” a área de programação que o Festival de San Sebastián dedica todos os anos ao cinema latino-americano.

Para a abertura desta mostra foi escolhido a co-produção argentina-uruguaia “El viento que arrasa” da argentina Paula Hernández, a história de um pregador e da sua filha que têm uma avaria no automóvel a meio de uma nova missão evangelizadora.

No encerramento o brasileiro “Pedágio”, da paulista Carolina Markowicz, que nos traz um pedaço de vida de uma trabalhadora de uma portagem de autoestrada que tem uma existência triste porque o seu filho é gay e ela faria qualquer coisa para mudar essa condição. O filme tem também produção portuguesa de ‘O Som e a Fúria’.

Os outros dez filmes da secção “Horizontes Latinos” são:

  • “Alemania”, primeira-obra de María Zanetti (Argentina);
  • “Blondi”, estreia na realização da actriz argentina Dolores Fonzi;
  • “Clara se pierde em el bosque”, outra estreia de outra actriz argentina, Camila Fabbri;
  • “El Castillo”, estreia na ficção do documentarista argentino Martín Benchimol;
  • “El Eco”, da salvadorenha Tatiana Huezo, filme premiado no Festival de Berlim;
  • “Estranho Caminho”, do brasileiro Guto Parente, já premiado no Festival de Tribeca;
  • “Heroico”, do mexicano David Zonana, que passou anteriormente por Sundance e Berlim;
  • “Los Colonos”, filme o chidleno Felipe Gálvez que esteve na secção ‘Un Certain Regard’ do Festival de Cannes;
  • “Los Impactados” da argentina Lucía Puenzo; e
  • “Totem”, filme que esteve no Festival de Berlim, realizado pela mexicana Lila Avilés que há dois anos fez parte do júri desta secção.

 

Cinema para degustar

A secção de cinema e culinária tem vindo a ganhar cada vez mais público. Nada mais natural já que a gastronomia é um dos principais motivos de atração da cidade de San Sebastián.

Nesta edição os espectadores puderam ver quatro filmes e uma série com histórias relacionadas com a gastronomia da Argentina, Alemanha, China, Perú ou França.

Na abertura a estreia mundial da série argentina “Nada”, realizada pela dupla Mariano Cohn y Gastón Duprat, responsável por alguns dos maiores êxitos do cinema daquele país sul-americano ( por exemplo “O Cidadão Ilustre” ou “Competição Oficial”).

“Nada”

“Nada” é uma série de ficção com cinco capítulos de 30 minutos cada e conta a história de um crítico gastronómico que se vê perante a falta de recursos e morte da empregada. A série conta com os actores Luis Brandoni e Majo Cabrera, e com Robert De Niro como convidado especial no último episódio.

No encerramento de “Culinary Zinema”, “La passion de Dodin Bouffant, do vietnamita Tran Anh Hung, prémio do melhor realizador no Festival de Cannes deste ano. Neste filme do autor do célebre “O Odor da Papaia Verde” conta uma história ambientada nos finais do século XIX, na qual Juliette Binoche interpreta a figura de Eugenie, que cozinhou durante 20 anos para o ‘gourmet’ Dodin (interpretado por Benoît Magimel), mas nunca aceitou casar-se com ele.

Os outros filmes da secção são:

  • Nan fang nan fang” /(Regresso ao Sul), primeira longa-metragem do chinês Xiao Haiping, em que a protagonista deixa peqim, o seu trabalho e o seu namorado para montar uma casa rural na sua cidade natal, onde cozinha para os seus hóspedes e conhece as suas histórias;
  • Pachacútec, La Escuela Improbable”, documentário do peruano Mariano Carranza que conta como a frequência duma escola situada num bairro desfavorecido de Lima fez com que três ‘chefs’ peruanos encontrassem o caminho para triunfar na sua profissão:
  • outro documentário é “She Chef”, dos alemães Melanie Liebheit e Gereon Wetzel. “She Chef” segue uma jovem cozinheira, Agnes, durante a sua aprendizagem em alguns dos restaurantes mais prestigiados do mundo.

Conferência sobre os grandes desafios da humanidade no espaço da CPLP

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No próximo mês de Novembro, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, o Fórum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES) vai organizar a 13ª Conferência internacional, em forma presencial e à distância, para debater os grandes desafios da humanidade no espaço da CPLP.

A 13ª Conferência FORGES está subordinada ao tema “Instituições de Ensino Superior e os grandes desafios da humanidade no espaço da língua portuguesa: estratégias para uma gestão orientada pelos ODS”.

O programa incluirá uma conferência inaugural, uma conferência de encerramento, sessões plenárias, fóruns dos diferentes eixos da Academia FORGES e sessões paralelas, e os conferencistas poderão submeter as suas comunicações até ao próximo dia 30 de Setembro nas sessões paralelas, enquadradas nos seguintes temas:

  • Contributos do Ensino Superior para os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS);
  • Sustentabilidade no Ensino Superior;
  • Ensino e Investigação no Ensino Superior;
  • Acesso, Diversificação e Internacionalização no Ensino Superior;
  • Transição Digital no Ensino Superior e Inteligência Artificial;
  • Mercado de Trabalho e Ensino Superior;
  • Ciência e Políticas de Ensino Superior;
  • Gestão, Liderança, Governo e Qualidade no Ensino Superior;
  • Financiamento do Ensino Superior;
  • Novos contextos sociais e geopolíticos no Ensino Superior.

A Associação FORGES integra 76 Instituições de Ensino Superior de Angola, Brasil, Cabo Verde, Macau, Moçambique, Portugal, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, e 455 associados individuais, tendo estabelecido como objectivo principal “promover uma rede de estudos e investigação na área da gestão e das políticas de ensino superior no âmbito dos países de língua portuguesa”.


por Luís dos Santos, Angola

BCE mantem aposta errada

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O último anúncio da subida da taxa de juros de referência do BCE, foi o décimo de uma lamentável série iniciada em Julho do ano passado, elevando rapidamente aquela taxa dos -0,5% até aos actuais 4%, que são o valor mais elevado desde que o euro foi criado em 1999 e que já levou a moeda única a cair para mínimos de seis meses.

Jornalistas, comentadores e especialistas já começaram a dar alguma voz ao descontentamento dos cidadãos europeus perante uma panaceia que não parece resolver a maleita, mas que ameaça seriamente exaurir mortalmente o paciente, especialmente porque a solução enferma de um erro de base: ao contrário do que sustentam os bancos centrais e os economistas neoliberais, o actual quadro inflacionista não resulta de um aumento da procura sustentado num excesso de oferta de moeda, antes de uma redução da oferta de bens e serviços originado pela redução da produção e pela quebra nos circuitos de distribuição provocados pela Covid-19 e pelas políticas de confinamento que a acompanharam.

Como para completar a tempestade perfeita, juntaram-se o conflito da Ucrânia e a política de sanções imposta pelos norte-americanos à Rússia, imediatamente traduzida no aumento do custo da energia e no mais que proporcional aumento da pressão inflacionista.

Taxa de inflação na zona Euro

Pretendendo resolver esta situação e fazer regressar a taxa de inflação para o patamar máximo dos 2%, o BCE insiste numa ortodoxia financeira que mais parece uma profissão de fé ou pura teimosia, como Joachim Nagel, o presidente do Bundesbank, ainda recentemente assegurou que “temos de ser teimosos, mais teimosos que a inflação”, mesmo depois de sabido que a Alemanha, a maior economia da zona euro, já admite uma contracção do PIB durante o corrente ano e que a OCDE corta previsão de crescimento na Zona Euro para 0,6% enquanto melhora o crescimento mundial para 3%.

Invocando a sua independência do poder político e o seu famigerado mandato de controle da inflação, o BCE mantém uma solução que promete estender até ao verão de 2025, mal-grado a sua duvidosa eficácia, como o demonstrou (entre outros) um estudo – A inflação pós-pandémica: reflexões a partir da economia portuguesa – publicado há dois meses pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Económicos da Universidade de Coimbra, no qual os autores concluem que ela é particularmente errada no caso da economia portuguesa onde o verdadeiro problema resulta da compressão dos salários reais.

Insistindo na ideia da inadequação da actuação do BCE, traduzida na simples subida das taxas de juro, o estudo ressalta ainda que esta está a eliminar a oportunidade de articulação entre as políticas monetária e orçamental em torno de objetivos socialmente úteis, como a manutenção do emprego e dos rendimentos e a resposta contracíclica às crises, que a necessidade de responder à Covid-19 tinha feito despontar.

Se nas economias periféricas da UE o principal problema com a subida das taxas de juro tem sido a redução do tão necessário investimento, no plano europeu mais geral ressalta a resistência das tendências inflacionistas (em mais de um ano e após dez revisões em alta da sua taxa de referência, o BCE apenas conseguiu reduzir parcialmente a taxa de inflação, que em Agosto último se situava nos 5,3% contra o máximo de 10,6% em Outubro do ano passado), facilmente explicável pela ineficácia de uma política monetária orientada para a redução do consumo, quando a bem conhecida origem do problema está na subida dos preços de bens relativamente inelásticos, como a energia e os bens alimentares, tal como já o admitiu a própria presidente do BCE. Pior, os efeitos de uma política monetária recessiva apenas irão aumentar o desemprego, agravando as desigualdades graças a uma destruição de emprego que atingirá principalmente os grupos sociais mais vulneráveis, enquanto asseguram o aumento dos rendimentos do capital rentista.

O agravamento das desigualdades fica ainda mais evidente quando se compara a evolução das curvas dos salários nominal e real com a da evolução do Índice de Preços no Consumidor e se constata que a fortíssima quebra nos salários reais, iniciada no segundo semestre de 2021, coincide com o disparar da inflação, que no caso nacional se arrastou por uns longos dezoito meses (até Novembro de 2022) e até atingir os 10%.

O resultado tem sido uma distribuição funcional do rendimento em benefício do factor capital e em detrimento do factor trabalho, que acelera uma transferência de rendimento dos segundos para os primeiros, facilitada pela posição desfavorável dos trabalhadores, pelos seus baixos níveis de sindicalização e pelo fraco alcance da negociação colectiva, a que acresce a opção do Estado pela imposição de cortes reais no salário dos funcionários públicos.

A solução para o problema do aumento constante da desigualdade deveria passar por uma política de subida dos salários nominais, a par com o fim da absurda subida da taxa de referência do BCE, de forma a preservar o seu valor real em harmonia com uma taxa de inflação que estabilize os lucros em níveis tão aceitáveis quanto os dos salários. Esta solução só colide com o princípio da independência do BCE na mente de quem nunca entenderá que o bem-estar generalidade das pessoas que trabalham e produzem tem que se sobrepor aos ganhos ou às vantagens patrimoniais de uma minoria rentista.