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Quarta-feira, Março 27, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Quem era eu não sei, o jazigo em viagem, a terra enfurnada sobre as memórias gastas de tiros e balas o inimigo escondido como eu, inimigo também, vozes sobre os ecos vadios um grito, o meu pensamento sem cal e cor e coisa nenhuma a alma arde como carcere voluntário quem quer, a tenda nunca escondida à vista do céu sobrevoa a cansada vontade de morrer com alma de guerreiro nunca fui nem nunca o quis

III

– nem sabia quem eras.

o sonho encobria-me vagarosamente num mordaz nenhum enquanto eras, arma de pranto?, eras coisa ali sentada à janela chorando prantos e o teu pai na guerra, eu num sonho pai nenhum, militar desacampado num deserto ou que floresta sozinho, a tenda de campanha abandonada, ninguém a não ser eu, o cabo Esperança sem alma, o verde confundido com lama, a chuva nevrálgica na atresia desértica desta áfrica longe e a minha mãe,

– que Deus te proteja meu filho!

o meu dedo picado a agulha enganada, ele em prantos, nervoso sem cicatriz no corpo e um carro lá fora,

– ambulância?

não sabia quem eras.

Quem era eu não sei, o jazigo em viagem, a terra enfurnada sobre as memórias gastas de tiros e balas o inimigo escondido como eu, inimigo também, vozes sobre os ecos vadios um grito, o meu pensamento sem cal e cor e coisa nenhuma a alma arde como carcere voluntário quem quer, a tenda nunca escondida à vista do céu sobrevoa a cansada vontade de morrer com alma de guerreiro nunca fui nem nunca o quis,

– queira Deus sobreviva!

um soldado sem arma amado em fugitivo,

– um cobarde!

diz o coronel, foi. Vi-os na lavra onde quimbos, onde cubatas, galinhas definhadas sem asas um churrasco apenas era fome, fome nenhuma se medo,

– Doutor, ai doutor.

a bala alojada e com calma dorme sobre a rótula de que perna,

– esconde-a se faz favor!

disse,

o céu aceso onde descansam os meus olhos de sonho ainda, a minha casa, o meu gato parido na arma lembrada e a caça onde o tio Zeca sacava pérolas.

– a metrópole, a metrópole!, estou cansado destes gajos doutor.

(voz morta!)

Que barca navio, que viagem suculenta sobre as áridas paisagens de tanto nada, a ferrugem esquecida tal a vontade de ver um leão sobre quintais alheios, um preto escorreito se gente, uma bala na testa se acertares e acertas, nem que fugir solucione, não, não nasci para isto, tudo isto é mentira juro, nunca imaginei ser parte disto nuca o fui, o alfredo fugiu e que espanha de franco o recambiou a caxias, um morto sem sangue e que bandeira o devolveu, a minha amada lá, sei lá se viva.

(1964), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente

Aprendi a desencantar-me como o tédio, a confundir rosas com acácias, sonhar como os pássaros ao fim do dia e que deserto este, o sonho amedronta-me, acordo arrepiado e enervado e cheio de sede e fome e sei lá que mais nem como, o desencanto é o meu encanto neste desconhecido pela maioria dos mortais dispersos pelos casebres castelos ou palácios ou que raio seja, a usar uma arma como um garfo picando a carne seca vinda de mandíbulas esdrúxulas, a língua moribunda aprendi,  a reencontrar-me na criança que fui, no velho obtuso e cansado, sim, estou cansado, cansado destas hipérboles vadias a incomodarem-me, mas é este o tédio que me enerva, vozes sem discurso, palavras escuras, olhos vendados quando toca a olhar em frente, estou desencantado como o tédio. São estas simples gotas de chuva a animarem-te? Porque te calas então? Precisas de mais sol e o inverno consome a tua essência?

Morres devagar sabes, ninguém morre depressa amigo, ninguém tem pressa de morrer, vicia-te então, o vício sacia os monstros e somos desgraça, à hora do jantar tu lá, a minha mãe lá, os meus irmãos lá, à hora da refeição rezamos sentados, dormirei a seguir sem conseguir coisa nenhuma e dormir, fecho os olhos e descanso um descanso enganador, pois, aprendi a desencantar-me como o tédio!

O peso era singelo, uma régua nem tu, a imagem volúpia emergente sem ti, noites ainda nem idas nem sofridas sem que se saiba sei lá,

– deita-te filho

esta voz ocorrida ou discorrida eu deitado se sentado sei lá, queria um milagre se fosse de facto nem coisa nenhuma levantei-me e era o claustro à minha mãe à beira nem tu,

– sorri Maria

ela nem olhos, o vento bramia eu sentado sei lá, a minha irmã coitada no hospital eu sem coisa alguma a fazer,

– espere as primeiras vinte e quatro horas.

ninguém morto e havia perecido, talvez.

A minha irmã na cozinha sentada na tristeza não a Maria, somos muitos e que mais, o sangue jorra o nosso destino,

– fica aqui comigo meu irmão!

a memória deambula e regresso magoado, o meu destino sofrido esta casa tua eu nela sei lá que mais a minha é tua somos do mesmo prato e comemos sozinhos neste destempero solitário a família nunca se perde por mais que a vontade que é nómada quando assim quisermos que seja, ouço tanta coisa nem penso já, a cabeça estiola a vontade nem miolos que reflictam e tu comigo nesta cozinha da tua casa mastigando percursos.

Ainda pequeno arrulhava a minha mãe,

– cala-te!

nem calado nem quieto zorilha a minha vida eu, nostalgias infindas sentava-me nas escadas para o quintal o bolinhas comigo. O meu pequeno cão preto e branco comigo.

Um dia serei, quero ser, nem que seja um empréstimo vadio da minha sorte!


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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