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Segunda-feira, Abril 22, 2024

A Mata das Raposas

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

O lenhador estava a envelhecer. De seu nome Couto, Manuel Couto. Vivia isolado na mata da aldeia de A-dos-Cântaros. A casinha onde vivia era de madeira, tinha sido morada dos bisavós, avós e pais do nosso representante de uma profissão que fora considerada necessária em tempos idos. Tempos em que todos cozinhavam em fogões a lenha.

Vir à mata e, comprar aos Couto, os troncos já cortados à feição da lareira era um dia festivo. As famílias atrelavam o burrinho, a mula ou a junta de bois à carroça e vinham carregar o combustível para aquecer a casa, cozinhar, e até tomar o banho na grande celha frente às chamas confortantes do lume.

O Sr Manuel Couto ficou viúvo. Saudoso dos tempos felizes que vivera ali. Não tinha tido filhos e sabia que seria o último a manter a casa e a profissão. Os clientes que ainda tinha eram pessoas que vinham buscar os troncos cuidadosamente cortados para acenderem lareiras de decoração. Chegavam com as barulhentas carrinhas de caixa aberta, e queriam mais pinhas do que madeiros. Novos combustíveis tinham substituído a lenha e o carvão.

Durante muitos anos a família Couto tivera o cuidado de ir abatendo as árvores mais velhas, podando apenas os ramos demasiado crescidos das mais novas. Tinham tido o cuidado de proteger a mata plantando novas árvores para não deixar clareiras onde, a terra nua, havia de parecer ferida.

A maior pena do Sr Couto era deixar a Mata das Raposas sem ninguém a cuidá-la e a proteger os animais que ali viviam felizes. Aves, como os chapins-azuis, os tentilhões, os pica-paus e mochos galegos. Raposas e fuinhas, répteis como lagartixas e salamandras. Tanta vida tinha a mata e agora quem ficaria a tomar conta de tudo isto?

A família de texugos tinha os seus túneis num local da mata bem escondido. Eram animais por que o Sr Couto tinha mais afeição. Escolhiam refúgio junto às margens do ribeiro que atravessava a mata, com pequeno peixe abundante. Frutos, azeitonas e bolotas, tinham à pata de semear, sem desdenharem trincar os grilos, os escaravelhos e as larvas abundantes no solo rico. As duas riscas negras de um e do outro lado da cabeça que é branca torna-os inconfundíveis. As orelhas pequenas, pretas, com as pontas brancas. Dorminhocos no inverno, invisíveis durante o dia, saindo cautelosamente para caçar ao escurecer. Em atenção a eles, deixava o Sr Couto alguns troncos caídos no chão, pois debaixo pululavam formigas e outros insetos muito digestivos.

Um dia surgiu surpresa. A Professora Zulmira apareceu na mata. Vinha buscar pinhas e madeira de sobro, se a houvesse. O Sr Manuel Couto veio à porta, atender a cliente. Estando em maré de palavras longas, pois já tinha acendido o lume onde fizera o café e as torradas de broa de centeio, começou a contar das suas preocupações em relação à Mata das Raposas que tinha a seu cargo. A dona Zulmira ouviu com atenção surpreendida e crescente as histórias da Mata e dos seus habitantes. Muitos dos pormenores que lhe estava a dar o lenhador, eram seus conhecidos de livros que tinha estudado e lido. Mas nunca se tinha dado conta de que relatadas assim tão ao vivo se tornavam um guia precioso que precisava ter ouvintes. Que de melhor para estimular nas crianças o amor pelos animais e a defesa da floresta?

Mas como fazer isso? O Sr Couto não sabia escrever e algumas palavras que lia mais as adivinhava do que soletrava. Era o hábito e a forma dos caracteres que lhe faziam entender a escrita.

_ O Sr Couto seria capaz de vir lá à nossa escola? Falar da Mata e dos animais aos nossos alunos?

O Sr Couto ficou sem fala! Haveria ele de ser professor sem sequer as letras conhecer?

_ Dona Zulmira! Os pais dos seus alunos haviam de rir de mim! Eu sou lenhador, não sou mestre escola.

Lá dizia a minha avó Jaquina que não se deve meter foice em seara alheia, e eu acrescento é melhor não meter ponteiro na mão rude de couteiro.

_ E o senhor nunca ouviu dizer que de pequenino se torce o pepino? Quer deixar a sua mata ao cuidado de uma aldeia onde as crianças não distinguem as pegadas de uma raposa das dum texugo? Nem eles, nem os pais?

_ E as escola aceita-me assim de entendido nestas coisas da floresta?

_ Aceita, sim. E o senhor vai ficar admirado com o material que lá temos para o apoiar: binóculos, desenhos, mapas, fotografias, tudo lhe vai permitir trazer a mata até à escola. O senhor e eu vamos criar um novo mundo de futuros mestres em biologia!

_ Pode ser que eu lá descubra o meu sucessor! Vamos a isso Professora Zulmira! Temos pano para mangas e nisto da defesa da mata sei as linhas com que me coso. Vai sair trabalho asseado!

 

Ilustração: Família dos Texugos Meles, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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