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Sexta-feira, Abril 26, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

A minha vontade é mandá-los bugiar e visitar um amigo dum bairro qualquer e comer sentado como se de gente se tratasse.

20

– Do lado de fora das portas da rua, entro em tua casa, para o lado de fora da tua alma e consigo de novo sonhar, na sombra dos caminhos que levo ate chegar, simples passos pela noite enquanto dormes, o ar profano das maresias envolve a espuma dos restos de nós, que rastejam sobre a areia que fica depois, do nosso amor estraçalhado e rasgado e misturado no que sobrar, após o regresso da maré, ao seu exacto leito, ao seu verdadeiro momento, que me leva, que me deixa, que me marca, que me ausenta, assim, refrescando-me completamente. Completas-me quando te completas. Ou a voz dos anjos?

– Vejo permanentemente a tua viagem quando nunca esqueço o teu sorriso, que nunca ouvi, ou quando nunca sei de ti, que nunca toquei, vem, mesmo que sempre aqui estejas e sempre que partas, sonha como sonham os pássaros que saboreiam a liberdade azul da sua vida, a liberdade exacta na sua plena dimensão, espalhando por todos os seus caminhos o eco da sua alma, que me murmura permanentemente e estaciona em mim, o calor breve das constantes e raras incursões de qualquer que queiras ou consigas colocar no ar, para que consiga eu colher e guardar em qualquer lugar onde possas estar ou ter passado, é lá que estão e ficam sem distância as presenças das tuas viagens pelo ar da nossa vontade alojando-se como nós por nós a dentro e sempre por nós, amando a vontade que quisermos ser de nós e só nossa como somos. Não fala de amor quem ama. Ama simplesmente.

Onde?

Que importa?

Somos dissecados. Quando efusivos. Somos moribundos assim mesmo, quando assumimos efervescentes a fantasia. Podemos mesmo ao sabor de rios ser algo mais do que isso se assim quisermos, ou seremos o contrário dos silêncios que construímos cada vez que caminhamos, porque nunca nos ausentamos desta impresença, estamos simplesmente. Que importa onde e como? Sabes onde estamos?

– Não.

– Nem eu. Sabes onde iremos parar?

– Talvez.

– Talvez saibamos onde nunca iremos parar… somos omnipresença um do outro, por isso, mais que o toque a voz, saboreando verdadeiramente a solúvel cor desta água de mar ou rio, como que tocando um no outro através dele. Verdadeiramente.

– Olha-me nos olhos.

– Olha-me nos olhos.

– Cruzemos a fluvial maresia aqui, cruzemos como quisermos o sorriso aqui, sintamos a fluvial distância aqui, sinto-te cá, ou aí, distantes? Porque havia de ser? Nunca entendi possível haver em mim tal distância de ti, sei como distantes estão os que mesmo agarrados, estão longe, ou perto os que como nós, poderiam estar tão distantes como a largura do mar, simplesmente perto e agarradinhos saboreando e a dissecar sozinhos o silêncio de imaginar ali, o peito cantando cânticos de poesia clássica, ou sonetos de maresia lusitana, navegando oceanos de descobrimentos, encontrar a meio do caminho o sorriso jamais perdido, dos lábios de quem sonhamos predicados inteligíveis, sem os contornos de riscos animados num horizonte funesto, das tuas mãos coladas à madrugada. Sorris sempre, sei.

– Angustiante felicidade. Beleza rara. Ou crepúsculo e azáfamas que inebriem a cor longínqua dos afectos repletos destas inconstantes ondas que me remam a ti? Estes dilúvios escritos nas telas que não há, onde irei ler os teus passos? A resma de tempo que sobrevoa os teus cabelos, pousando lentamente o meu olhar, quando sorris, vê-lo quão belo este mar desagua na tua distância intrínseca dos nossos desejos, areando a pele de sol enquanto repousa sobre nós. E vamos, vamos sem saber nem como, deitar as almas, dormir juntos os tempos comungados sobre o oásis de nós, assim.

Que labirinto?

Entre balastros, creia eu, crepúsculos, o riso estúpido da janela como sombra da vontade e eu, apenas sei que não sei rir escondido:

– Olha, falta-me o papel higiénico!

Da porta, se aberta não sei, o olhar disperso como se árvores, esquecidas na direcção da minha sanita branca a derreter para esgotos esta náusea intestinal, sentado, ali fico até amanhecer.

Sigo devagar este trilho doloroso, ver nas antecâmaras da dor um silêncio sujo, formar defeituosamente, miscigenações culturais e intelectuais reflectirem-se no saber dúbio dos aprendizados, os que seguem ou querem ser algum fruto neste doloroso caminho da sapiência.

Os nojos que navegam por este conhecimento inconsciente sem bases, estas ruas abertas ao disfuncional esquema de ensinar e aprender, esta rua inacabada dos nómadas do saber, o quintal dos outros, o frio seco das mentes adormecidas. Os anos ensinaram-nos a não saber mais, a ser sumo-fruto da acomodação, a confundir alhos com bugalhos neste recinto onde quem se julga algo mais, aproveitando a circunstância dos que nada sabem vindos de rios tão frágeis, uma dor que não vem em nada incomodar.

Sem identidade alguma, que dizer?

Confundir espanhol com brasileiro, português com dois olhos perante cegos inocentes nesta casa onde saber merece respeito, mas, digo, sente-se no dia-a-dia esta confusão, este embaralhado conhecimento das coisas de forma mais lúcida, concreta, racional, com uma identidade própria, clara, verdadeira.

A culpa é desta raiva adormecida!

A minha cabeça estilhaça, esmiúça as mais pequenas preocupações do senso-comum, as horas sem sono, o rosto gasto nestas avenidas anoitecidas, a memória acordada em cada sono, vegeto silêncios que a mais ninguém incomoda. Esta raiva é das inconstâncias remanescentes no próprio corpo cansado do tédio, este vernáculo ruído espalhado nas mentes que com nada mais se preocupam a não ser vitimar, estes conceitos vigentes na regulação dos sentidos, talvez por isso e muito mais o meu sono é inócuo, não me apetece dormir nem parar de pensar, castigar-me contra as conjecturas inapelavelmente instituídas, dos que tanto falam desconhecendo a motivação de qualquer outro ser humano respeitosamente vivendo no seu caminho, este atropelar constante das vidas privadas de um ser mansamente aglutinado nestes rios que a si mesmo pertencem, a culpa é desta raiva sem destino a que nada se faz sentir, os barulhos distantes a contarem histórias de heróis adormecidos no cemitério mais miserável dos que se incomodaram com o ritmo mais silencioso das ciências, da história, do homo-sapien, da cultura interrompida pelos calafrios mais medonhos da convenção dos que mandam. Acredito que tudo isto me cansa, deixa em mim este sentimento de revolta contra a evolução parada dos sábios comodamente sentados na sua sala de medos, tudo isto me farta e cansa, calçar-me de sandálias sem cor e percorrer os corredores mais escondidos dos outros, fugir sem medo desses gloriosos da razão vigente dos conselhos apátridas, dos que me tentam convencer dos meus erros, a televisão ao fundo emerge contras a levarem-me sem destino, não consigo mais ouvi-los, não quero mais ouvi-los, estou cansado e deste sargaço apenas a minha convicção calada nestas letras que ninguém nunca lerá, que me importa saber disso se sei que a cultura é um jardim sem rosas, onde a relva se queima ao regar-se de vinho tinto putrificado.

E onde adormecer esta raiva sem destino?

Beberia talvez um desafio quem sabe, das palavras sem sentido ditas por quem se julga o mentor dos meus destinos, esse desafio acomodado nas fileiras mais sangrentas da condição humana, vomitar contra rostos disfarçados de mentores da minha saúde escondida. Não me queria cansar tão depressa, mas não há remédio. O doutor receitou-me cumprimentos contra a gripe e nem de gripe me queixo, mas que motivos terão eles para me receitar venenos por uma convicção só sua nesta janela de oportunidades que promove às farmácias falidas, prescrito o remédio e no hospital ouvir:

– Deite-se.

A minha vontade é mandá-los bugiar e visitar um amigo dum bairro qualquer e comer sentado como se de gente se tratasse.

Farto de ser a minhoca dos seus instintos, de ser a âncora dos seus calafrios, desgostos e frustrações que sobre mim descarregam, farto-me de tudo e sem conseguir explicar não quero saber das suas informais capacidades para comandarem o destino que Deus me proporcionou.

Estou farto.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas

 

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