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Quinta-feira, Maio 29, 2025

Manuel Aires Mateus vs. Antoni Gaudí e um Quarteto de cordas pelo meio

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Porquê e de onde me vem esta ideia de contrapôr Gaudí a Manuel Mateus?

I

O título do artigo não explica tudo.

Porquê e de onde me vem esta ideia de contrapôr Gaudí a Manuel Mateus?

Quando em Barcelona visitei a catedral da Sagrada Família e outras casas de Gaudí fiquei impressionada, por um lado, com a intenção modernista, mas por outro, com a relação expressamente procurada com a natureza e a religião, ou melhor, uma experiência mística que de algum modo o seu neo-gótico excessivo, barroco de tão intencionalmente trabalhado, pudesse proporcionar.
Não sei como reagiram outros: eu distraí-me com o apelo da forma, com o apelo da cor, com uma obra (e o mesmo senti nas outras) que não libertava o espaço, (como o gótico despojado dos séculos passados, o nú do românico de pedra mais humilde) mas antes o capturava nas curvas envolventes.


Manuel Aires Mateus


Antoni Gaudí

A mim, fazia-me falta o que encontrei nas obras de Manuel Mateus: a linha que liberta, a luz branca que tudo contém e por isso de mais nada precisa, (como na albedo dos alquimistas gregos) e ocorreu-me que se podiam contrapor as curvas de Gaudí às rectas de Mateus, sendo que estas sim, permitiam uma leitura infinita.

São infinitas as linhas rectas, deixam um espaço que livremente respira, são fechadas as curvas que afinal nas suas dobras esconsas ainda que coloridas, não permitem que se avance.

Como falar então de espiritualidade?

Num dos artistas o esbanjamento da imaginação (com o acumular das imagens), no outro o despojamento da ideia condutora e da imagem-força que lhe induz.

Num, o permanente excesso, no outro a subtil contenção que permite que a luz entre, na sua linha infinita. Apela, deste modo, a uma mesma mística, quem sabe mais e melhor vivida, porque não permite olhares mais distraídos?

Um arquitecto é um criador que refaz o mundo à sua volta.

Contempla, imagina, desenha, projecta. Num universo em expansão é natural que a obra  reflicta, ou mesmo busque, esse espaço infinito.

E serve-o melhor que a linha curva, a linha recta. E que um espaço fechado, um espaço aberto.

Rasgado, mesmo que, por vezes, como Gaudí, o erga para o céu.

Agora surge a pergunta: porquê falar em alquimia?

Porque no caso de Gaudí, a estrutura do seu imaginário apontava para a fase da cauda pavonis, a colorida “cauda de pavão” significando, no trabalho dos adeptos, o momento em que a materia prima se desmultiplicava numa feérica abundância de cores, que mais tarde seriam sublimadas na albedo, a cor branca, indicadora da perfeição a alcançar. Aqui entraria um outro imaginário, o de Manuel Mateus, dos brancos espaços abertos, infinitos.

II

Associação de ideias, de que Breton tanto gostava, foi em parte o que me aconteceu: ouvir a intervenção de Manuel Aires Mateus na RTP 2, no programa de Anabela Mota Ribeiro ( o segundo já da nova série, que recomendo) levando, como ela pede, uma ou duas sugestões que se prendessem de algum modo com os seus interesses e sua inspiração, sendo ele um arquitecto de mérito nacional e internacional, mais do que reconhecido. E ele, com a maior simplicidade levou um romance, o romance de Tommaso di Lampedusa, o Príncipe da Sicília que nessa obra magistral que é O Leopardo, retrata um tempo, o da grande mudança “para que tudo ficasse na mesma”, como lhe diz o sobrinho que será seu herdeiro. Esse tempo, que o autor retrata, de ascensão de uma nova classe, burguesa, boçal, como se vê no filme que o livro inspira, ao mesmo tempo o desgosta e lhe dá uma sabedoria que é só própria de quem sabe olhar e ver ao longe, na distância, o que nas civilizações foi sempre marca distintiva : a mudança, a dada altura a imperiosa mudança. Chama-se evolução.

Daqui partimos para a mudança de épocas, de gostos, de prioridades, de estilos. Assim se faz a evolução das sociedades, e assim se fez, na nossa sociedade ocidental, também na arquitectura, com os seus criadores. A palavra chave, na intervenção de Manuel Mateus, como nas longas reflexões de Lampedusa foi, por um lado o tempo, mas por outro e talvez mais sublinhada, como se poderia no espaço (Lampedusa falava de casas, não gostava de dizer palácios, enquanto com o caseiro contemplava a infinita paisagem dos seus campos…) capturar o tempo: o antigo, o actual, o do futuro.

Gaudí (não me esqueci dele) procurava o futuro na convulsão reiterada de um passado arquitectónico que seria irrepetível, como foi. Não dava espaço, não deixava respirar, concebido para que se admirasse e se continuasse adiante, em busca de outra coisa. Essa outra cosia não estava lá, surgiria mais tarde, num adiantado século XX em que a relação entre artes se tornava marcante, buscada e praticada, e também, como Manuel explicou, na arquitectura, depurada e liberta, já num espaço infinito.

Falei em coincidências e aqui está a outra, a que me quero referir, e fez para mim, o pleno da semana:

Jack Quartet © Shervin Lainez

a apresentação, no Festival de Quartetos de Cordas da Gulbenkian, do Memorável Jack Quartet, que (eu ia dizer me deslumbrou) me deixou pregada à cadeira onde há já uns anos eu não me sentava, naquela sala de concertos. Tocaram, de Andreia Pinto Correia, uma peça intitulada Unvanquished Space (dedicada, nas suas quatro partes, a cada um dos membros do Quarteto, seus amigos de longa data).

Partiu, como contou na conversa prévia com o público, de um texto literário de autor americano conhecido, em que prevalecia um olhar sobre a sociedade e os seus modos, presenças e ausências, de que não falarei aqui, para não me perder. O interessante é de novo esta relação, neste caso da música, com a criação literária, seu tempo próprio e sobretudo seu espaço: algo invencível.

Traz um conceito que merece muita reflexão: na era em que o espaço cada vez mais se abre, e se procura, num limite infinito, ( com a ajuda também, sem dúvida, das novas descobertas trazidas por astrofísicos e outros sábios que se ocupam do espaço ) este conceito de um espaço invencível: mas que interpela os criadores, os desafia, e aguarda as novas soluções que nos venham propôr… Neste espaço invencível Andreia introduz “periferias da luz”.

O que me permite recuperar a reflexão de Manuel Mateus, sobre as linhas, puras, o branco, que atrai e devolve a luz, no espaço que se abre às casas.

O mesmo se verifica na peça de Andreia, onde os sons se abrem até, quando preciso, ao ruído, os ecos da ponte de Brooklyn, tão conhecida no mundo, por fim dando lugar ao suave mergulho no silêncio que foi rompido, e tal como nas casas brancas projectadas permite que se caminhe pelo misterioso infinito que nos aguarda lá fora.

Lá fora, onde a inspiração (a respiração) é livre e consentida.

Já estarei um pouco perdida, nestas lucubrações, mas é-me importante agora parar, levada por estes criadores, a novos conceitos, como o de liberdade e infinito.

Somos livres? Ou somos determinados, logo à nascença, como Lampedusa tenta dizer a um sobrinho que já viajou, já limpou a cabeça de preconceitos e a quem o novo modelo social (ainda que injusto, não assusta?).

E que limites, na sociedade e na arte ainda se nos impõem? Com que linhas, que sons, que casas, podemos ainda sonhar?

Os infinitos lugares da nossa infância, do nosso crescimento, do nosso amadurecimento.

Onde fica a alquimia, de que parece que me fui perdendo? Nos quatro andamentos da peça de Andreia, que se completam:

Um labirinto submerso – nigredo
Os cantos reluzentes de um espaço por conquistar – cauda pavonis
Periferias da luz – albedo
Para dentro do silêncio – rubedo

Confuso?

A explicação noutra altura, noutro lugar…


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