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Sexta-feira, Abril 26, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

o nosso destino hoje meu capitão?

XV

Nem talvez o cigarro entre os dedos cansados suporte a viagem, sinto o cabelo nas brasas do vento e que voz entre nós a deflagrar a verdade que verdade meu Deus, fumo um canto evaporado e talvez cansado, um fumo nefrálgico a dissipar-se pela janela do jeep antigo onde que soldados a fumarem comigo,

– o nosso destino hoje meu capitão?

vozes nem vozes lá, só silêncio entre calados sem diálogo, espera-nos de novo uma missão, seguimos de farda armados em agentes da paz. A floresta ladeia-nos e nós a caminhar, onde que radar o rádio anuncia qual código de informação a gente perde-se nas trincheiras onde que vazios e o cacimbo frio, a cabeça fora disto tudo e o corpo dorido o paludismo, hospital de campanha onde curar camaradas, injectar fecundos momentos para não haver mais recordação, penso e dispenso os meus sonhos, a minha vida é este enclausurado caminho numa rotina cansativa. Já nem sei onde o cansaço, tudo é dor e trauma, uma voz que me acalme estou cansado de ouvir os mesmos rugidos repetidamente, esta falésia a perder-se de um horizonte vazio e nós nada, todos embrulhados na mesma resma de camuflados inteligentes a deflagrar o infortúnio. Cansado de facto.

O caminho afoito desafia-nos como seguir e a gente segue, somos náufragos neste labirinto a tilintar águas na falésia desta serra morta, este arvoredo massacrado com tantos ais a eclodirem as madrugadas derretidas num canto qualquer da vida, a vida assim perde-se, nada se ganha, tudo é fardo e miséria, sinto cães a ladrarem atrás de nós e nós caminhando como se nada fosse, acredito que tem de ser assim. Gente dispersa pela tarde, vejo-os indiferentes olhando-nos, pensarão eles quem somos nós mas acodem-nos, a lama ou a ponte inventada, o medo ou segredo para contar um dia qualquer, a morte ali. Camaradas destripados e amputados, amigos que deliram onde que febre os enerva a cabeça estala,

– doutor!

a minha alma viaja também, sinto-me tantas vezes perdido neste meio por desvendar, o escuro ensurdece e a gente perde a noção do destino e que destino, fugir da morte é o nosso lema, não matar, a morte é horrível, é uma coisa feia de mais para nos assombrar-mos nela, velórios e óbitos a cansarem-nos a saudade, de jovens que nem se despedem dos seus ente-queridos a esta distância incomoda, isto são nervos que se acumulam e cansam, um dia fartar-me-ei e sucumbirei também.

Acordo de frente à mata que rodeia o nosso acampamento e nada, pela madrugada giestas apenas e ventos frios, o capim sacudido embala uma ânsia vazia, sinto um vazio no estômago que sufraga fome e nem fome, o vermelho das picadas e nem vista, a metralhadora em punho e onde os turras?, um acampamento e mulheres de seios à vista saúdam-me, aceno feliz sentindo-me gente neste meio onde tantas vezes a minha razão me abandona, cães por essas aldeias todas a seguirem-nos o jeep e a gente a continuar num ritmo infernal e nem sei se a caminhar, parei por dentro. Adormeci o silêncio, a voz, escuto,

– a bússola?

improvisar uma ponte, para seguir e nem chuva a sorte, tacos de madeira, catanadas em árvores ali estanques, dois troncos e pontaria seguimos, a aldeia a saudar-nos como se fossemos heróis, mas somos apenas soldados a cumprir uma missão, choramos a cada saída para campanhas onde quantos ficam sem regressar, quantos camaradas perdi, sabes?, ninguém sabe, a noite empobrece a visibilidade e que fazer?, recuperar, parar e procurar onde que lanternas a mirarem uma direcção apontada. Sinto na cabeça o frio de lisboa e longe lisboa, a neve de trás-os-montes do Esperança onde a matança do porco e que porco nós aqui, aqui só saudades, tristeza, lágrimas, esta comissão miserável onde obrigados matamos, a morte é horrível!, por que razão matar um irmão para não morrer?, incutiram-nos na cabeça que os turras são horríveis mas onde os horríveis?, seremos talvez nós os horríveis, viemos para uma missão onde tirá-los do nosso campo de acção era ordem, afugentá-los da vida e esta vida é nossa não deles mas eles quem?, procuro entender e que conclusão chegar?

(1969), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114084 (2020-7-12)

Ao fundo fogueiras, rituais e cânticos, ao fundo a felicidade possível dos daqui e nós ansiosos por sermos daqui também, amigos como homens sabes?, salvo feridos e não raças, odeio ouvir falar de terroristas quando a ser seremos nós, sou um soldado cansado desta vida e desertar é um auspício, a minha pátria enumera-me apenas e não me considera, pedem-me orelhas cortadas como prova da nossa acção!

Ainda assim sonho uma pátria um dia e quem sabe a minha, a de tantos como eu nesta comissão triste de eliminar a razão que se convenciona, não, não nasci para isto, juro, nasci para médico num hospital qualquer salvar e curar, quero um dia lisboa de novo mesmo que para nada ou ninguém, sou apenas branco na pele e gente por dentro, sinto como dói o insulto e na caserna de novo,

– ai doutor!

a vida escorre sobre macas e macas vazias de essência, estou cansado e tu Deolinda, cansada da solidão que a pátria me incute, a minha filha sem pai, sei, que fazer?


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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