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Sábado, Setembro 21, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Parece tudo tão lento e ao mesmo tempo rápido demais, uma bala alojada num peito ou um furo nos pneus do jeep, uma mina cansada de nada fazer explodir-nos e atirar-nos para as bermas vadias deste mato sem dono

XXV

Com mil tempos de tédio na tenda de campanha ou na batalha, vai o soldado. Mil tempos a caminhar descansado neste campo verde e seco onde rios e nada de mar, mil tempos a sorrir desgostos e sem apóstrofos delegar a minha vida à saudade, mil tempos a definhar silêncios neste barulho infernal de tiros e balas perdidas a ver camaradas estendidos, mil tempos a sonhar com um regresso ainda por sonhar e sempre pensado, adivinhar as minas e o jeep a caminho, picadas e mato num intervalo apenas imaginado e neste o meu canto onde vim para me salvar, mil tempos de inglória onde que glória, uma bandeira assombrada sobre uma caixa e por cima herói pela pátria depois de nada mais se conseguir.

Parece tudo tão lento e ao mesmo tempo rápido demais, uma bala alojada num peito ou um furo nos pneus do jeep, uma mina cansada de nada fazer explodir-nos e atirar-nos para as bermas vadias deste mato sem dono, a noite alonga-se, parece não terminar, a caminhada definha-nos e nós cansados, a farda suada, a boina tombada, o jeep grita nostalgias tal o seu cansaço, a gente caminha e que destino?, rumamos sem direcção, a bússola à ilharga de um sorriso e nada de sorrisos, tudo nos pesa e cansa, mil tempos em cada campanha e a vida flui como se o dia estivesse ali sentado a nosso lado.

Cumprimos ordens de um estado gordo e bafiento, sentimos a sua sonolência, as suas vertigens e alucinações, sentimos a sua inconsciência e insanidade, somos apenas o que somos numa campanha de ninguéns seguindo em marcha fúnebre instruções superiores onde ninguém é nada a não ser um soldado que o estado obrigou e a ter de cumprir, nem penso na importância da vida nestas masmorras cansativas e nem Salazar lá, sou um soldado obrigado a sê-lo ou então caxias para sufragar a desobediência.

Escrevo silêncios nesta cama de hospital a saborear a vida lendo restos esquecidos numa esquina de qualquer página da minha vida e eu ali, devorando o entusiasmo desta alegria de sorrir ainda.

Não me sinto cansado, desafio a todos os instantes a minha ânsia, o meu respeito pelo tempo que me dispõe ainda estar vivo, sim, sorver o prazer de poder ver o sol nascer enquanto as folhas deste livro se abrem, uma a uma, sem pressas, todo o tempo é válido nesta cama só minha.

A gente ali consegue entender o absurdo, perceber o precipício, vislumbrar o soluçar cadente da gente ali dispersa por camas e sonhos perdidos. Ouve-se ao longe o silêncio da partida e a voz de quem nos queira engolir. Entendemos então como fintar o fatídico, simular o fim e reviver sem angústia.

Patrulha no mato, 1961. Fonte: Arquivo Histórico Militar, Arquivo fotográfico da guerra em Angola – Espólio do fotógrafo Manuel da Graça e Costa. PT/AHM/FE/110/B2/MD/12

Um renascimento real e as janelas a iluminarem os corredores longos que me cercam, os passos de gente calma na cura de tantos que definham e sem saudades e sem memória já, gemidos cansados e famintos, fome e sede, sente-se a vida desviar-se dos corpos mal tratados pela impaciência de se ser correcto. Umas gotas do céu molham a rua fustigada, o vidro da janela pingado e eu ali repensando o futuro sem esquecer que o passado viveu comigo anos a fio.

A gente sente o silêncio da alma, o percurso que o destino nos reserva, a gente sabe quando força a razão natural das coisas, o que obrigamos a que o nosso corpo ceda tão rapidamente desta existência excelente, sabemos tão bem conviver com os hábitos, beber da água que nos preencherá por dentro e dará cor e brilho por fora. Por isso escrevo silêncios guardados na alma nesta cama cansada de me suportar, a que me convida a sair e correr bem depressa pelas ruas do fantástico, receber as divindades do mar e da terra numa rua qualquer da cidade, viver como se deve sem suportar o cansaço da dor e da fantasia.

Não me sinto cansado porque sei como viver sem que o cansaço me absorva, sem que o mal seja um parceiro para o meu destino não desejado, sem conseguir dormir como se dorme como um anjo e se sonha como uma criança, com esperança, com fé, força e razão, uma verdade alojada à cabeceira da vida e nesta cama serei tudo isso, ansioso pela vida vivida sem dor nem remorsos.

Levanto-me, dou uns passos tranquilos e tento primeiro ver a rua, olhar de soslaio o sol que ainda dorme, nuvens atravessam o céu sobre a minha cabeça e a melodia do dia a começar, o vento quieto por entre o meio escuro ainda e eu ali, olhando também para dentro de mim mesmo para que me perceba, planear o dia, as actividades que me irão sustentar e animar sempre enquanto tudo é ainda tão verde. Sim, encontrar uma juventude que perdure e fique, um sorriso que me alimente a cada suspiro, sentir a razão da felicidade escorrer por cada poro dos meus dias que se reiniciam todos os dias e sempre diferentes, acutilantes e fantásticos, sentindo na testa o brilho das ideias e da performance dos nosso gestos e actos.

Sim, não me sinto cansado.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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