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Sábado, Setembro 14, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Três anos passados e o regresso para quando?, não sei de nada, dizem-nos apenas a missão não está ainda concluída, mas concluída quando?, nada nos explicam e a gente aqui, nem pasmo nem ignoro, lamento uma dor infinita numa solidão entre tantos, centenas de soldados encurralados numa vitória nunca conseguida, quem vencerá?, talvez os soldados que regressarem sãos e salvos.

XXIV

Os anos viajam e connosco sombras e desejos, há tanta felicidade e enquanto presentes comemos as relíquias da vida, pois, sabemos nós, todos nós, que a vida é um ciclo tantas vezes curto ou longo, nem sempre é mais curto, depende muito da intensidade a que nos entregamos à vida, ao ciclo e percurso que faz de nós o que formos enquanto estivermos. Despendemos alegrias e felicidades enquanto partilhamos vivos o nosso amor pelos que temos, deixamos filhos e amigos a crescer com memórias tantas por nós deixadas e sabemos que a morte não termina a alegria de quem tivemos, embora os tenhamos sempre numa memória infinita. Sobre a secretária um sem número de papéis rasurados, riscados, cansados também, não sei se tudo isto me cansa amor, imagino e não me canso, isso sim, de pensar na vida lá fora, onde nada de fardas e castrados neste acampamento de prisioneiros e enjaulados, viajamos apenas campanhas contra que inimigos, vizinhos tantos deles bebem e comem à nossa mesa e nós na deles, pouco importa se no chão ou numa celestial sala preenchida pelos dogmas mais resquiciosos do sistema. As tardes decorrem e o pensamento em viagem sempre, tudo serve para mais umas páginas na vida que levo, tudo são experiências válidas, um contarei tudo isto Deolinda, as mazelas que não desaparecem e as alegrias que enfim, vamos tendo. Ainda assim saudades,

– escreve-me Deolinda!

vontade de estar num consultório em lisboa, aprender com o meu pai e beber da sua experiência, ter horas de chagar a casa e ver-vos, abraçar-vos, ver a Santa Paola e pegá-la com os meus braços, mas faltam ainda picadas e emboscadas, trilhos e miséria, verdade, caminhar noites seguidas e busca de nada, onde nada existe a não a cabeça dos que nos desprezam, somos heróis voláteis, míseros utensílios de um sistema que só nos desprotege, somos filhos de uma nação que nos ignora e esquece e de nós nada mais quer saber a não ser contar cabeças abatidas. O cacimbo aperta e nada de chuvas, a seca nas matas e o lodo nas almas, a luz estridente do jeep velho e cansado, o soldado perdido no meio de todos nós chora medos e receios, a matança do porco em vila real, tudo passa a ser mais triste ainda mais e tudo se desfaz nesta masmorra de vadios como somos, obrigados a sê-lo, percorrendo o vazio das noites sem que ninguém nos surja. A minha cabeça é uma viagem permanente, noite e dia sem vacilar vislumbro os meus desejos e ânsias, os medos também, tudo é vazio enchendo-me a cabeça com receios e tremelicos nestas passagens por caminhos destruídos, caminhos velhos e partidos, pontes inventadas por nós para assim conseguirmos ao menos caminhar ocultando o distante em que lugar for. Não entendi ainda o que vim aqui fazer, a sério,

– acredita Deolinda!

(1961), “Guerra Colonial: paraquedistas seguem para Angola”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114836 (2020-9-12)

sinto-me um objecto utilizado para nada, querem-nos mortos, só consigo pensar nisso e tantos já foram, vejo-os estendidos, a alguns ainda consigo dar folego, mas tantos chegam-me à mão já sem respirarem, tudo isto é medonho e cansativo, acredita, acredito também que não foi para isto que estudei na linda Coimbra o especialista de médico Psiquiatra. Sou um oficial que comanda centenas de soldados e desmotivado que fazer?, ouço-os em lamúrias e desabafos, não consigo separar-me da verdade deles, somos uma comissão de lágrimas em terras tão lindas e vermelhas como as que tenho visto.

Três anos passados e o regresso para quando?, não sei de nada, dizem-nos apenas a missão não está ainda concluída, mas concluída quando?, nada nos explicam e a gente aqui, nem pasmo nem ignoro, lamento uma dor infinita numa solidão entre tantos, centenas de soldados encurralados numa vitória nunca conseguida, quem vencerá?, talvez os soldados que regressarem sãos e salvos.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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