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Sexta-feira, Abril 26, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

eu longe a viajar nas matas escondido escrevo as cartas e releio centenas de vezes a mesma voz, a minha mulher ainda grávida acebei de chegar ao porto de luanda e recebido pelo calor deste céu cheio onde que sol brilhava

XXXVII

Do que eu gostava mais do jardim zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em eclipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como a que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua”.

Em criança arrepiavam-me os macacos empoleirados como se de artistas de circo, as bananas colhidas num gesto de artista descascadas num assombro e saltos para trás como que a decorar o silêncio encantando-me sem risos, a rua de trás subia até ao estádio da luz ainda sem iluminação contava à minha mãe, o meu pai distante nas urgências do São José recolhe os regressados com febre tifóide e que febre a minha mão prepara o almoço enquanto os meus irmãos estudam para o exame no dia seguinte. O cheiro de livros velhos na biblioteca do meu pai e consultamos receitas para uma boa nota e a minha irmã

– o António?

de pijama ainda o banho mais tarde come o pequeno almoço com leite e flocos de aveia da mercearia do senhor João de há anos na estrada da luz.

Sempre gostei de livros sem imagens para imaginar a floresta nesta casa de tantos de trás para a frente e vice-versa na casa enorme onde nascemos todos e já antiga, e a minha mãe

– nasceram aqui todos os meus filhos!

conta a história de família, uma família com uma história de montes de gerações sem capitão nenhum e eu aqui nas sombras de ninda onde as sanzalas escurecem sem iluminação e apenas pequenas fogueiras nos mostram o pirão que nunca tinha visto menos ainda comido. A parteira já velha num lar à esquina da estrada de benfica resiliente e já cansada

– nunca fui mãe e quantos ajudei a nascer!

sentada na sala para as visitas olha-nos à chegada

– o meu menino!

a minha abraça-a e sorri, enquanto recorda: vi-vos todos a nascer recordo-me como se fosse hoje, e velhinha, sozinha agora e eu longe a viajar nas matas escondido escrevo as cartas e releio centenas de vezes a mesma voz, a minha mulher ainda grávida acebei de chegar ao porto de luanda e recebido pelo calor deste céu cheio onde que sol brilhava. Adorava gaivotas, sentia o mar salgado enrugar-me a pele e da cor bem diferente da de lisboa, um azul ao fundo com uma mistura talvez verde e algas saltitam tal como peixes famintos buscando o ar da superfície, alguns passos apressados chamavam-nos, bem no fundo a cabeça no jardim zoológico de benfica onde macacos sorviam descascando pacientes as bananas atiradas de longe, do lado de cá da rede eram outros tempos, nunca ouvira falar da guerra do ultramar além-mar numa distância de meses num barco que definhava cansado hoje em sines descascado para ferro velho sobrevive sem cor nem a bandeira desse tempo.

Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira

em nome da pátria, os heróis nacionais

Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na umidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trémula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantes dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires. Pássaros brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais putas cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes de gasosa, à maneira de baldeias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de tempos a tempos as ancas ao tirmo de pasodoble de uma angústia indecifrável. Alferes pequeninos e de óculos, com ar competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos na direcção de carruagens de gado que aguardavam num pontão coberto de detritos e de limos, pontão da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos aos pés da cidade, cães idosos que bolsam no capacho vómitos de lixo: em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, escarro-busto, escarromarechal, escarro-poeta, escarr-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto à filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, tão rico de ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebro exaurido por raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim de conseguir pensar”.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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