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Sexta-feira, Março 29, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Escute-me, não é para si que quero falar, preciso apenas que me escute e por favor não responda a nada. Porque vê filmes de guerra de falsos profetas?

XXXIX

O capelão atordoado esgueira-se para as traseiras da mortuária afinal meu quarto, os corpos são embrulhados como traças esfomeadas como quem espera abutres na capela. Na selva os leões gritam rugidos azuis de zinco como telhados de vampiros a zombar os esqueletos ainda sem terra ou cova e lisboa espera-os uma tarde longa na portela, a base longe onde os jeeps-ambulâncias seguem pelos trilhos de capricho num ruído de velho espantando as sanzalas, vejo-os a correr para os esconderijos espreitando devagar sem moverem o capim apenas vento os badala como um sino de ode triunfal para a suas almas enlutadas numa caixa de madeira qualquer sem nome ou glória, mas apenas mais um como o Santos da província a família sem notícias. Notícias de rodapé num jornal cansado e enlameado de viagens a perder-se de vista e o jeep derrapa na lama quando o general se desloca encobrindo um silêncio de zinco esta fibra nos ossos, os olhos abertos contra a luz da tarde neste sol de inferno nas casernas de luto como perdizes num sepulcro em quatro jazigos inventados para as noites de insónia, o capelão reza e no altar uma cruz de madeira disfarça Cristo para a nossa sede de fé e nada,

– benza-me capelão!

mesmo do fundo a voz perdida como claustros esfomeados procuram curas e milagres desenfreados, o Alfredo sobe os degraus limpando o cano da sua g3 com a mira desviada tal a queda ao saltar de medo quando uma rajada e fogo o apontavam, mas perdidas contra o eucalipto das traseiras. Os postigos aleatórios na tenda fecham-se desmembrando a intenção do fogo perdido no quintal das sanzalas queimadas, galinhas e bodes numa correria que é feito do churrasco prometido?, ainda assim sentamo-nos ecoando as vozes pela noite que nos abraça num conforto de freiras esbatendo as batinas de cordel desfiado no cinzento perdido das cabeças estioladas e que vaidade, nenhuma presente e apenas zunidos de animais ferozes que buscam alimento e o gado dos negros aos saltos alertam-nos e nós num tiro aborrecido e já está restando o mesmo sentados lado a lado num vinho azedo do churrasco de fome, as senhoras negras de panos mijam nas traseiras abrindo as pernas desafiando o apetite

“há quanto tempo não toco numa coisa daquelas”

imaginando-se sobre ela num torpor de ganância abrindo-lhe as pernas mais ainda. Sinatra idolatra nova iorque numa cidade sem negros encostados a um bairro sem água, o rádio das comunicações geme, alerta, e o soldado sentado,

– se tivesse uma viola agora tocava uns acordes lá da terra!

e nós sem sabermos o tempo que decorria lá para longe.

Escute-me, não é para si que quero falar, preciso apenas que me escute e por favor não responda a nada. Porque vê filmes de guerra de falsos profetas?, entende?, os filmes matam a verdade, as telas inebriam aquele fundo escuro da sala e sem sorrisos engolidos como estrepos num hangar antigo onde os goivos poisavam, vim de longe sabe, do palco real de tiros e granadas a matarem e a consumirem, de camaradas estripados e degolados com o sangue a saltar das tripas, escute, que raio de ideia tiveram esses cineastas em contar guerras sem nunca lá terem estado, a inventarem gritos de espingarda num gesto de piano nas falanges súbitas da vida onde a gente se consome de verdade, miolos de fora e nada, beber daquela água para saciar a secura das matas naquele sol de verdade e nada dos estúdios para filmar recônditos para encantar as bilheteiras sabe?, sim, sei que sabe, deixe-me dormir então um sono descansado na sua cama mas não me toque, estou farto de toques, a sério, preciso mesmo de dormir.

Cena do filme “Cartas da Guerra”, de Ivo Ferreira

Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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