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Domingo, Outubro 6, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Rodopia-se pelas aldeias desta lisboa de Pessoa e estátuas esfregadas no metal do tempo poisam sombras de imbondeiros velhos a secar ventos de saudades vencidas

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As ruas estremecem ao passar como uma vertebra entupida nas costas, no peito balas de vinho ensanguentam silêncios de saudades encostadas nas barbearias antigas do rossio e o vazio atropela-se como vento, pombos debicam restos viciados no sargaço da fome que escorrega devagar do céu com uma chuvinha branda nas calçadas onde vadiam perdidos escondidos apenas no próprio rosto, rodopia-se pelas aldeias desta lisboa de Pessoa e estátuas esfregadas no metal do tempo poisam sombras de imbondeiros velhos a secar ventos de saudades vencidas, um rumor seco nos dedos como um pulmão desgastado sente-se, ruas que descem no sentido dos patos que existiam no parque onde que lagos escorriam o campo grande de jardins cobertos de eucaliptos em sons de veneza com misturas equilibradas vai-se, descobrindo o colégio onde nunca existiram fantasmas.

As cascatas nas laranjeiras existiram como quem imagina o divino, são frases soltas nas setas que indicam como descobrir o destino num vazio estúpido que bóia nas águas famintas contra as madeiras inadequadas das casas velhas da musgueira olhando devagar para aviões que aterram nas lezírias de pistas fantásticas e escuras como breu ladeadas por pirilampos de cores cintilantes. Como que uma cambota nas tripas esta bala alojada no ombro que me provoca ainda assim náuseas, o reflexo imaturo de um carnaval sem estrelas nas jangadas de passerelles antigas de torres vedras, descobrindo as muralhas do castelo de bode vigiado por astronautas camuflados à entrada e sem sapatos, não vá isso incomodar os anjos.

Amuletos sim, nos bolsos das moedas para que cresçam à medida que a cabeça desaparece num desfalecimento disfarçado de escombros num areal distante da nossa casa, uma recta inclinada como a torre de pizza para tourear militares antigos na guerra dos impérios da nossa imaginação escondida entre copos de rhum dizimados pelo silêncio. Enche-se a cabeça como fuga ao tédio ao mesmo tempo que tudo se dissipa mal se abrem os olhos bem cedo, logo pela manhã nesta rua com cheiro a maçãs na avenida da liberdade, nas esplanadas encostadas por detrás dos muros da inquietação, rotundas cansadas por todos os cantos da cidade sem estrelas e o fumo dos carros nas narinas sorvidas de ranho e o lenço de cetim por lavar há dias, sabes, nunca me sinto parado nesta viagem imaginada percorrendo os sobressaltos da minha inconstância quase permanente, necessidade de confessar a todos o espelho dos meus momentos ainda que nada na cabeça para que me sinta o vértice profundo dos medos recalcados neste torpor de álcool que se espalha pelo sangue e pelas tripas como feijão vermelho na barriga vomitada.

Livros de vida na secretária para que os consuma num ápice, encontrar uma saída aberta e tudo se consumar sem esforço como quem desce os combatentes, planar orquídeas para que a tarde desflore perfumes e aromas como ventos que sobrevoem as janelas do meu silêncio que apenas existem nesta cabeço entaladas entre paredes de medo.

 

 

O Menino de Sua Mãe

 No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 

FERNANDO PESSOA


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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