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Quarta-feira, Março 27, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

tudo é tão lento menos o barulho dos obuses, sinto os albatrozes na berma deste rio que nos cerca e seca a sede, ouço a telefonia cansada e sem pilhas, recordo e só memórias, a minha cidade não é esta, não, nem pertenço a este lugar, sou um tropa cansado desta guerra!

IX

Estava deitado e de olhos abertos observava o escuro vagaroso por entre que saudades, olhava, e tudo o que via era tão parecido com o que imaginava, o escuro cobria todo o horizonte do meu pensamento e o olhar perdia-se num tão lento silêncio das trincheiras. Por momentos pensava em levantar-me da cama e sentar-me tentando ver melhor o pequeno raio de luz que passava pelas frinchas da preciana, assim como tudo de repente me parecia um navio bem longe, estava deitado sim, sobre um soalho pequeno onde que frios me arrepiavam solenemente a pele e a cabeça balouçava sobre a almofada velha que a minha mãe me deixara em pequeno.

As saudades esdrúxulas da minha cidade pintam-se de breu, escorre no horizonte o fluxo verde da sua inesquecível verdade, a verdade da cor que não existe, mas é verdadeira a sua existência onde os corações habitam. Vejo nos sonhos as danças de benfica e no calor a recordação de voltar um dia com os membros completos, recordo camaradas, o Silva, o Esperança, os que estiolados não voltarão como eu se é que ainda me permita a sorte não levar com um balázio nos cornos e ir desta para melhor e regressar como os outros, embrulhados com a bandeira da nossa nação.

– ai Deolinda!

Leio as tuas cartas num vagar tão devorador, a enfermaria a abarrotar de camaradas, febres, dores, cansaço, sargaço e eu onde?, escreve-me Deolinda, em cada carta tua o cheiro da minha cidade, a voz da minha mãe, o meu pai médico no hospital e eu sem ti, escrevo-te seco, nesta selva onde só mato tudo é seco, vomitamos insónias, ladramos tiros e viajamos picadas repletas de tanto nada só mata, onde nada se alcança e ordens a cumprir e nós vamos.

– salva-me Deolinda!

Ao ler algo vindo de ti renasço, parece até que me cresce uma vontade de lutar para voltar a estar na nossa casa, pegar a minha filha ao colo e dizer-lhe,

– o pai voltou são e salvo!

apenas releio, tudo é tão lento menos o barulho dos obuses, sinto os albatrozes na berma deste rio que nos cerca e seca a sede, ouço a telefonia cansada e sem pilhas, recordo e só memórias, a minha cidade não é esta, não, nem pertenço a este lugar, sou um tropa cansado desta guerra!

A cada passo o futuro mais longe, ouço vozes calarem-se a cada dia e a dor é uma permanência nas nossas vidas se vidas, ligo a telefonia tentando recordar mais do presente, esse de que estou ausente nestas matas longínquas da terra que desconheço, a minha mãe velhinha e tu Deolinda, cuida dela por mim, dá-lhe o afecto que não consigo nesta terra longe para liquidar inimigos se inimigos, pensamentos que a pátria criou metendo-nos na cabeça de que eram quem não queríamos e nós nada, sou apenas um soldado a cumprir um castigo destinado pela pátria.

– escreve-me Deolinda.

Ao ler as tuas cartas sinto-me mais perto de ti, sinto-te mais perto de mim, sinto as cores de lisboa neste sangue jorrado em terras que não são minhas, não pertenço a isto, sinto-me sem o direito de matar ou ver morrer,

– manda-me notícias da nossa filha!

sento-me no consultório cansado, farto, ouço gritos de todos os lados, macas espalhadas pelos corredores da tenta de campanha, não medicamentos para a alma que arde de tantas coisas, soldado de trás-os-montes, o Esperança há meses numa cadeira de rodas e o jeep capotado, a mina que explodiu e rebentou-me na cara, chove copiosamente lá fora, trovoadas e raios que fazer?

Tento às vezes, tantas, nestas manhãs curtas descobrir um destino para onde encaminhar o meu sentido despido de tudo e viver de ostras, restos calcados pela vida nómada de quem sabe sentir a dor, das noites claras de um soldado dispersado numa floresta qualquer, numa tenda de campanha já queimada onde que sol brama, tantas vezes acordar sem ter dormido a sentir esta vontade e vejo restos camuflados estripados nos corredores e eu sem saber como curá-los, tantas vezes um ódio de viver, vezes sem conta a morte nas minhas mãos e quem precisava de mim, havia como pensar e em consciência ser racional neste fundo de dor tão profundo!

(1963), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114100 (2020-5-31)

Escrevo cartas ao fundo do tempo que me resta para recordar, para fazer lembrar que ainda existo embora longe da vida, penso nos meus amigos que há muito não vejo nem sei quantos ainda se recordam de mim, um soldado que partiu para a guerra sem saber para onde nem para quê.

Ainda me recordo dos teus dentes mãe, quando me sorrias e transpiravas suor de amor o meu filho é um herói, o teu sorriso lindo pelos corredores da minha imaginação e tu sozinha hoje, velhinha e sem mim e eu sem ti, foi um destino que a pátria me deu, lutar pelos nossos e quem os nossos numa terra de outros?

Deolinda, a minha cabeça está a segundos de ti, estou a segundos de benfica, da minha rua, dos meus amigos, estou tão perto dessa vontade que só ela me acalenta esta força de continuar vivo, a minha filha sem pai, amo-te Deolinda.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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