Caminhamos e nem sempre a combater e tantas vezes parar em qualquer lado beber, bebemos a vida para que nos esqueçamos do seu valor, para perder o medo e disfarçar ao fundo a dor.
XXXIII
É quase sempre cedo nestas caminhadas, nem me apercebo sequer se há sono, este mundo aqui é tudo o que ninguém imaginaria na vida e o que dói mesmo é ver definhar camaradas, sentir o real valor da vida, tudo é vazio aqui.
Caminhamos e nem sempre a combater e tantas vezes parar em qualquer lado beber, bebemos a vida para que nos esqueçamos do seu valor, para perder o medo e disfarçar ao fundo a dor. Cigarros e cigarros carregados de fumo que esvoaça e vai, levado pelo vento desta praça qualquer onde gente simples nos acolhe e serve,
– branco, quer mais cerveja?
e sem luanda há anos, apenas passamos por lá quando chegamos e logo este lugar escondido e sem prédios, sem luzes e mar, apenas gente simples que nos acolhe oferece do seu comer e comemos,
– boa esta galinha senhora!
ali sentimo-nos sem guerra e porquê a guerra então?, a gente definha por nada, morremos como cães, sentimo-nos insignificantes, sabes?,
– a tropa faz de ti um homem filho!
O meu pai no consultório o meu filho é militar, defende a nossa pátria, a minha mãe na cozinha, sim, sempre a cozinha onde ela adora inventar delícias para uma refeição delirante, os meus irmãos estudam e a facultade todos os dias,
– nem notícias do meu benfica!
Aqui nem rádio ou sem pilhas fumamos e eu ainda na enfermaria, encosto a cabeça e nem pensar consigo, escrevo retalhos e rascunhos e cartas e recebo cartas e papais e rascunhos e ordens do general, a enfermaria como sempre repleta de camaradas, uns definham outros gemem,
– até quando isto doutor!
A minha família ainda por lisboa e sem notícias, a minha Santa Paola
– como estás filha?
completa mais um aniversário e sem mim, que festa lhe oferece a mãe sem o pai presente, sim, na cabeça tudo é vivido e a gente disfarça a dor, dilui-se o momento e seguimos, todos os dias são coisas diferentes sei, aqui é sempre mais do mesmo, repetimos o nosso ritual e caminhamos e andamos e viajamos e a floresta a ladear-nos parece noite todos os dias, chove e frio nada, o corpo aquecido a medo, dos tiros, das balas que nos seguem e granadas ao fundo no seu estrondo faz-nos tremer.
Aqui nem bagaço apenas este vinho a martelo da fazenda do Quintas, bebemos até cair e quantos?, sei lá, a gente perde a noção das coisas e da razão de tudo, tudo isto é o momento a que nos incumbiram de fazer, viemos combater em defesa da pátria que nos pariu!
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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